Do enviesamento ao princípio da incerteza
Texto de Tiago Mendes É comum vermos alguma confusão entre dois problemas associados ao conhecimento científico: o enviesamento do observador e da observação e o princípio de incerteza de Heisenberg. Este é um muito modesto contributo para o esclarecimento dessa questão. Em maior ou menor grau, todas as ciências sociais se preocupam com a quantificação de certos fenómenos. Um problema com que os estudiosos se deparam é o enviesamento do observador, que se refere ao facto da existência de um observador que, ao fazer uma experiência e/ou testar hipóteses, poderá influenciar os resultados por ele obtidos, dando uma ênfase maior aos resultados esperados prestando indevida atenção a resultados que contradigam as ideias tidas à partida. Este enviesamento pode ser consciente ou inconsciente: o experimentador, convencido do poder das suas hipóteses, manipula a experiência ou os resultados obtidos (ou melhor, os resultados que vai obtendo, à medida que muda alguns dados na experiência) de forma a que as conclusões se aproximem das suas hipóteses. Uma forma de lidar com este problema, quando se faz um estudo sobre o impacto de X, envolvendo a comparação de dois grupos - um em que X está presente, outro onde X está ausente (o "grupo de controlo") -, é optar pelo "double-blind". Isto consiste em garantir que quem conduz a experiência e quem nela participa não sabe quem é que pertence a cada um dos grupos até que a análise, sob esse "véu de ignorância", esteja terminada. Este problema, que tem como origem o próprio investigador, é comum às ciências sociais e naturais.* Outro problema, de natureza diferente (embora aparentemente parecido), é o enviesamento da observação. Neste caso, o problema não surge por uma questão comportamental (consciente ou inconsciente) do observador, mas pela interferência da própria medição no fenómeno estudado. Essencialmente, o problema está no acto de observação e não no observador. As ciências naturais dão-nos exemplos muito claros: por exemplo, o termómetro de mercúrio que, ao medir a temperatura de um corpo, absorve alguma da sua energia termal, mudando, desse modo, a sua temperatura original; ou o caso da observação de um electrão, em que o necessário (a essa observação) fotão interfere na sua trajectória. No âmbito das ciências sociais, podemos pensar no caso de um estudo sobre o altruísmo e reciprocidade em que, não havendo anonimidade, um participante altere as suas escolhas pelo facto de interagir pessoalmente com quem faz o estudo. (Note-se que o essencial é que o participante é observado/identificado: a essência da interferência vem da observação e não do observador.)
O princípio de incerteza de Heisenberg (PIH) não tem que ver com os problemas que resultam da interferência do observador ou da observação/medição, referidos anteriormente. Usando o exemplo porventura mais conhecido, o PIH diz que não é possível saber, simultaneamente, e com certeza, a posição e a velocidade de uma partícula quântica. Isto acontece para outros pares de (simplificando, um pouco abusivamente, a linguagem) "características". O PIH postula que, sobre cada uma delas - em cada par - é apenas possível obter uma distribuição probabilística - com uma média e um desvio padrão. Por exemplo, não conseguimos saber "com certeza" qual a localização de um electrão, mas podemos saber qual a probabilidade de ele estar numa certa localização, em torno do núcleo, num dado momento do tempo. A "incerteza" vem daqui: na Mecânica Quântica, ao contrário da Mecânica Clássica, deixamos de poder medir, com uma precisão arbitrária, certos fenómenos. O PIH impõe um limite mínimo à incerteza com que se consegue medir, simultaneamente, as duas "características" em causa - chamemos-lhes x e p. O que podemos dizer é que o produto dos desvios padrão da distribuição de cada uma delas tem um límite mínimo:
, em que
é a constante de Planck. Em suma, no princípio de incerteza de Heisenberg estamos perante uma impossibilidade que é exterior ao observador e à observação, ao contrário do que se passa com os enviesamentos do observador e da observação, em que isso é intrínseco a eles mesmos (ou a pelo menos um deles). Claro que a incerteza na medição de um par de "características" só se revela quando um determinado observador resolve fazer uma medição. Mas o problema é, objectivamente, exterior a isso. É uma impossibilidade intrínseca às particularidades da Mecânica Quântica e não à forma como o homem a pensa ou lida com ela. Para concluir: é falacioso fazer uma alusão aos princípios da mecânica quântica e do PIH para fazer um paralelo com os problemas de observação/análise existentes nas ciências sociais. A incerteza que surge nas medições feitas pelos cientistas sociais tem uma origem e sobretudo uma essência diferente da incerteza inerente às medições quânticas. Não é com base nos princípios da mecânica quântica que justificamos a interdependência entre o observador e as observações feitas. Esses enviesamentos advém de uma impossibilidade - ou dificuldade - intrinsecamente ligada a um problema de agência ou a uma influência entre observador e observado interna ou intríseca ao problema em causa. Diferentemente, o PIH tem que ver com a impossibilidade de conseguir uma precisão maior do que um limiar mínimo, na medição de pares de "características", e isso é, pelo menos sob o ponto de vista de possível influência entre o observador e o observado, externo ou exterior ao problema em causa. Termino como comecei: frisando a modéstia deste pequeno empreendimento e dando a palavra - que só descobri quando escrevia este texto - ao Carlos Fiolhais, do Rerum Natura. *Este problema é agravado pelos critérios de publicação (que provavemente não podem ser outros, faço apenas uma constatação) em revistas científicas. É que para um paper ser aprovado, tirando raras excepções, tem de conter resultados "positivos", no sentido de confirmar pelo menos grande parte das hipóteses avançadas à partida. Isto faz com que se agrave o problema de enviesamento do observador, uma vez que este sabe que a probabilidade de conseguir publicar um paper é tanto maior quanto mais fortes forem as suas conclusões. A forma como os artigos são seleccionados para revistas científicas leva a um problema de selecção amostral que pode ser mais ou menos grave: uma vez que apenas (ou bastante mais que proporcionalmente) os artigos que contenham conclusões que não rejeitem as hipóteses avançadas são publicados, e dado o critério, bastante descontínuo, de rejeição ou não rejeição de uma hipótese, existirá uma sobrerepresentação da corroboração de uma hipótese, eventualmente rejeitada por outros autores que não conseguem publicação (isto tudo "assumindo tudo o resto constante": o mérito dos investigadores, etc). Imaginemos que s pretende testar o efeito de X em Y. Nove em dez estudos rejeitam que haja um efeito, mas fazem-no muito marginalmente. O restante estudo, que não rejeita essa hipótese, é publicado. Para quem não tem acesso a todos os estudos, a única coisa observável é que existe apenas um estudo sobre o assunto e que não rejeita a hipótese de que X tem um efeito em Y. O "peso" deste resultado é, claro, largamente sobrevalorizado. O facto de haver uma selecção de artigos com base, entre outras coisas, na rejeição das hipóteses propostas faz com que os resultados publicados não sejam representativos da investigação realizada. O caso oposto, em que um artigo é aceite, mesmo que apresente uma rejeição de hipóteses avançadas, resolveria dois problemas, mas traria outros dois: por um lado, não haveria incentivo a manipular os resultados para aumentar a probabilidade de aceitação da publicação nem um problema de selecção amostral; por outro lado, diminuía o incentivo a procurar teorias e hipóteses razoáveis e com alto poder explicativo, uma vez que tudo o que estivesse formalmente bem feito não seria rejeitado à partida, mesmo que apenas apresentasse a rejeição de uma hipótese estapafúrdia. Deixava de se premiar o génio e a criatividade. Estes dois extremos podem servir para melhorar um processo onde tem de haver selecção e onde se deseja que essa selecção seja inteligente e não apenas "academicamente irrepereensível", no sentido de ter em conta mais do que apenas aquilo que é avaliado.

