do conceito de cidade
o comunicado de antónio costa sobre os casamentos de santo antónio que o público reproduz em parte merece atenção. não estou muito bem informada sobre a natureza da festa, que aliás acho e sempre achei pacóvia, mas parece-me claro que se se trata de uma festa da cidade, organizada e -- o que não é despiciendo -- financiada pela autarquia, está completamente fora de questão que se ponha sequer a hipótese de discriminar o acesso a casais de pessoas do mesmo sexo a partir do momento em que o seu casamento esteja instituído em condições de igualdade -- ou seja, a partir do momento em que seja promulgada a lei que o governo propôs e que foi aprovada no parlamento.
não será decerto o facto de a festa ocorrer sob o chapéu do nome de uma personagem canonizada que a torna propriedade da igreja católica -- basta pensar nas festas dos santos populares e no que se passa nelas, de licenciamento de arraiais a emborrachamento generalizado, para perceber o quanto essa ideia é risível -- e que justifica que seja esta a impor regras e critérios. segundo o que tem sido noticiado, as candidaturas aos casamentos celebrados nesse dia, e que têm como justificação o auxílio aos desfavorecidos ou coisa que o valha (nunca me debrucei sobre o assunto, mas se calhar vai ter de ser -- * done, ver adenda dois em baixo), têm incluído casais de religiões que não a católica e outros que se casam civilmente, como aliás é natural num país que não tem religião oficial. ora a partir do momento em que a festa incluiu casamentos civis -- ou seja, não celebrados pela igreja católica -- a interdição de candidaturas de casais do mesmo sexo, na condição de a lei ser promulgada, é simplesmente inadmissível.
percebe-se que a alguém tenha ocorrido questionar a câmara sobre este assunto, na perspectiva de polémica, mesmo se a lei ainda não foi promulgada e portanto a questão nem sequer se coloca para já. e teve o que procurou, claro: uma oportunidade para a hierarquia da igreja católica chantagear a câmara avisando que 'sai' das festas se os casais do mesmo sexo entrarem e para a câmara fazer uma declaração muito infeliz. é óbvio que no que respeita à intervenção da igreja católica na festa, não faz sentido propôr, como diz antónio costa, qualquer alteração ao actual modelo.
mas daí até acrescentar isto -- 'É claro para o presidente da Câmara de Lisboa que, sem prejuízo de considerar o respeito a qualquer fórmula de constituir família, é necessário respeitar os sentimentos religiosos associados à figura de Santo António, um santo da Igreja Católica Apostólica Romana. (...) Para que não haja equívocos, não haverá qualquer alteração ao actual figurino dos Casamentos de Santo António que não seja previamente acertada com a Igreja' -- vai a diferença entre representar a cidade e tornar os cidadãos súbditos de uma ordem de valores sem legitimidade democrática.
a ver se nos entendemos e para que não haja, de facto, equívocos: a igreja católica não foi eleita para administrar a cidade e decerto não merece mais respeito que qualquer dos cidadãos que a compõem e que antónio costa representa. se santo antónio é propriedade exclusiva da igreja católica, com copyright e tudo, então a câmara nunca devia organizar e financiar uma festa que nesse caso só pertence à igreja católica e no âmbito da qual não se entende que tenha alguma vez ocorrido um casamento não católico; se a ideia que subjaz à festa é que o santo é património cultural da cidade, a festa é da cidade e é a cidade que dita as regras.
um apontamento final: da parte de uma organização que passa a vida a queixar-se de que há quem queira 'expulsá-la' do espaço público e até da história, a invocação da propriedade exclusiva de uma festa popular e de um nome que faz parte da cultura popular é bem demonstrativa do quanto essa queixa é uma manobra de vitimização manipuladora. está em causa afinal, como sempre esteve, o poder sobre o espaço público, o poder sobre o que é ou não permitido aos cidadãos. de quem é a cidade, é o que pergunta esta pequena história. convinha que aqueles a quem elegemos e a administram em nosso nome -- em nosso nome, sublinho -- saibam responder.
adenda: tomás vasques sobre o mesmo assunto e com a vantagem de muito mais e melhor info sobre a iniciativa
* adenda dois: na página dos casamentos de santo antónio (página da câmara de lisboa), podem ler o regulamento, a história do evento (a linguagem é muito interessante, sobretudo no que diz respeito à 'tradição') e o 'desafio' de antónio costa. podem também conhecer-se os parceiros e patrocinadores. só não se conhece a 'comissão' que escolhe os noivos nem os critérios com que esta é escolhida e escolhe (ai, a transparência) nem, já agora, qual o papel da igreja católica apostólica romana no evento (não está em lado algum na página oficial).