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afinidades electivas

Escolhemos os nossos amigos por muitas razões. Podemos até fazer listas infindáveis sobre razões – termos crescido juntos, gostarmos da mesma música ou dos mesmos livros ou dos mesmos filmes ou da mesma estética em geral, termos o mesmo sentido de humor, termos passado por coisas importantes ao mesmo tempo, termos as mesmas ideias sobre o mundo e as pessoas e as pessoas no mundo. No limite, porém, por mais fundamental que tudo isso seja, não chega para fundamentar essa coisa extraordinária que é ter alguém em quem podemos confiar e que pode confiar em nós, alguém a quem sabemos que podemos recorrer sempre e que, esperamos, nunca nos deixará cair.

 

A ideia da predestinação, tão associada ao amor e à sua biologia (uma predestinação aliás estranha, quando pensamos em todos os amores não correspondidos, infelizes e/ou desadequados – no sentido de nada haver de comum entre os amantes -- em que já tropeçámos na vida) costuma andar arredada da amizade. Não é comum elucubrar-se sobre pessoas feitas umas para as outras no que aos amigos respeita – há a noção de que a amizade é uma ligação assente na razão e não uma revelação metafísica como a do amor. Peço licença para discordar. Creio que a ligação a que damos o nome de amizade tem muito mais em comum com a paixão que o que estamos em geral dispostos a admitir. Há um momento no amor em que percebemos que amamos – pode ser qualquer coisa, importante ou sem relevo, de uma frase a um olhar ao esplendor da carne – e o mesmo sucede com o momento em que o reconhecimento da empatia com alguém nos faz chamar-lhe amigo. Como no amor, há na amizade traições, altos e baixos, fins e recomeços. Como no amor há ilusões e desilusões, desapontamentos, quedas e deslumbramentos. Ao longo de uma relação entre amigos estamos sempre, como numa relação de amor (se a relação prestar para alguma coisa, bem entendido) a redescobrir motivos para ela, a valorizá-la, a celebrá-la. Nem todos esses motivos são tão transcendentes como uma certificação de lealdade (e se sem lealdade não há amizade, certo é que todas as grandes amizades têm os seus momentos de dúvida, de falta, de falha, até de traição). Às vezes são só confirmações disso que se sente como predestinação. Descobrir, por exemplo, que aquela nossa amiga tem exactamente as mesmas manias que nós, manias tão improváveis e bizarras que nunca nos teria passado pela cabeça alguém poder partilhá-las. Ódios de estimação – de Dire Straits e Phil Collins a cortinados, de relógios de pulso a nacarados --; pancadas monomaníacas, como fazer colecção de sabonetes de hotel ou só gostar de verniz de unhas escuro; gostos rigorosamente idênticos, como os que ocasionam compras separadas absolutamente iguais ou o decorar do mesmo único poema.

 

Claro que com o tempo os amigos tendem a acertar sentimentos e escolhas, a influenciar de forma subliminar, intangível, os gestos e as cosmovisões: a convivência torna-nos sempre mais parecidos. É porém nos hábitos e peculiaridades que já traziam consigo que mais nos maravilhamos com os encontros. Não como se o que procuramos e nos apazigua nos outros fosse uma outra versão de nós, mas como se as semelhanças nos certificassem que estávamos destinados a encontrar-nos e a fazer alianças. Que, afinal, existimos uns para os outros, e que de outra maneira dificilmente faríamos sentido. Que é isso mesmo que fazemos com os que escolhemos e nos escolheram: um sentido. Como quem diz um caminho – uma estrada. E se não podemos nas portas estreitas (e são tantas) passar em companhia, que haja quem connosco odeie cortinados e dance Blondie. (publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 3 de janeiro)
 

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