o assassino tranquilo
Só esta semana fui ver Zodiac. Desde Seven que David Fincher é um dos meus realizadores favoritos – pela forma como filma, pelas histórias que escolhe, pelos actores que dirige, pela desolação não mitigada do seu olhar. De Zodiac tinha lido bem e assim assim. Houve quem dissesse que o filme é chato, mas que ser chato faz parte da sua qualidade, a de encarar com verdade o processo de investigação policial e jornalístico, com as suas inúmeras falhas, empates, becos sem saída. Houve quem dissesse que não reconhecia a câmara de Fincher nas imagens mais académicas que o costume nele. Mas, apesar de o filme ser voluntariamente lento, não lhe encontrei nada chato. Creio aliás que poderia ficar mais uma hora a seguir aquela história sem me cansar. A inteligência raramente cansa. A forma como Zodiac encena a violência, por exemplo, como em minutos constrói nas vítimas personagens com as quais podemos – somos obrigados a – identificar-nos, como nos coloca num mundo aterrador onde se eclipsam todas as certezas e não se garante qualquer redenção (tão ao contrário das narrativas policiais comuns). A forma como nos faz reflectir sobre a tranquilidade com que cruzamos as ruas da cidade, com que assumimos poder confiar no pacto de não agressão que consubstancia a ideia de comunidade humana, de civilização. Tão fácil é ter ocasião de matar. E ser morto. Tão fácil é, num descampado ou numa rua apinhada, no cinema ou na plataforma do metro, ser vítima de um assassino “de oportunidade”. Devíamos talvez surpreender-nos que haja, em cidades de milhões de habitantes, tão poucos destes homicídios ao acaso que tanto nos aterram nos filmes. Pensar na naturalidade com que assumimos o contacto físico, numa sala de espectáculos, nos transportes públicos, com outros que não conhecemos de nenhum lado. Quando tanto se repete a ideia de que o mundo está “cada vez mais perigoso”, ou que “a insegurança é cada vez maior”, devíamos pensar nisso e na forma como as coisas se passavam há uns séculos, quando tanta gente não saía à rua sem uma arma. Ou como se passam ainda hoje em lugares onde a violência homicida, monopolizada pelo Estado ou disseminada na sociedade, é uma certeza diária, que faz olhar cada rosto como o de um potencial verdugo. Esta ideia de paz que de tal modo tomamos como garantida, ao ponto de a pôr em causa nas raras vezes em que é quebrada, é um milagre. É por crermos nesse milagre – o milagre de crer que os outros, ou que a imensa maioria dos outros, não nos quer mal e nos reconhece como iguais em dignidade e direitos, intocáveis na nossa integridade física – que tanto nos aterramos com o assassino do Zodíaco, o homem de voz calma que decide caçar pessoas como quem caça perdizes. Um homem como nós, a viver entre nós, que não nos reconhece outra natureza que não a de vítimas potenciais. Um homem que não se revê em nós e em quem não podemos, não queremos, rever-nos. Um homem que gostaríamos de decretar fora da espécie, da família, mas que pode ser qualquer dos que connosco se cruzam todos os dias, invisível, banal, normal. É essa a obsessão de Robert Graysmith, o cartoonista-escuteiro interpretado pelo fabuloso Jack Gyllenhaal: conhecer-lhe o rosto, encará-lo, extirpá-lo da multidão. Saber que ele não é toda a gente. Pacificar o mundo, reinventar o milagre. Robert acredita que o fez. Nós saímos de Zodiac sem essa certeza. (texto publicado na coluna Sermões Impossíveis da NM de 8 de Julho)

