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Reconhecimento

"Mas dizer que tapar o rosto corresponde à negação da existência é equivaler a individualidade e a integridade do Eu ao reconhecimento dos outros - reconhecimento visual, ainda por cima."


Fernanda Câncio

 

Apesar de concordar com o que a Fernanda escreve neste post, tenho alguma dificuldade em perceber a passagem supra. Pior: acho que esta passagem contradiz o repúdio que a Fernanda diz sentir em relação a burkas e niqabs, pois torna-o ininteligível. O repúdio da Fernanda não é estético: é etico. E é esta dimensão ética do repúdio da Fernanda que sai prejudicada quando a Fernanda diz que o Eu não depende do reconhecimento dos outros. Se isto fosse verdade — não é — um escravo poderia ser livre, como defendiam os Estóicos.

 

 

A liberdade não existe sem reconhecimento dessa mesma liberdade — e é por isso que o reconhecimento é constitutivo de um Eu que se quer livre: eu só sou livre se outros me reconhecerem enquanto tal. Ou seja, o Eu requer uma determinada realidade — cultural, legal, etc — para ser esse mesmo Eu, e nunca é algo que pode ser sustentado individual ou atomicamente. O Eu existe sempre e necessariamente de forma mediada.

 

"Owing to their freedom, human beings may be capable of rights, but these rights remain mere possibilities unless they become actual in the medium of recognition, and in this sense recognition is the foundation of right. Recognition mediates the affirmative consciousness of freedom a plays a crucial role in the formation of the ethical sphere. Recognition decenters the modern concept of the subject found in Descartes and Kant, not by displacing it as in structuralism, but by expanding it into intersubjectivity. In short, subjectivity is transformed (aufgehoben), expanded and elevated into intersubjectivity (...) Recognition transforms the modern concept of the subject into an ethical intersubjectivity and transforms the classical political structures into a historical and social ontology of the conditions of freedom's actualization in the world (...) Hegel's story of the social mediation of freedom includes the parochial universality bof the family, its dissolution into the self-seeking competitive formal individualism of civil society, and the ethical critique and correction of both by the state (...) The significance of recognition for Hegel's ethics as a whole may be stated as thus: The threshold of the ethical is reached when the other comes to count. Part of what it means to say that the other counts is to be found in Hegel's concept of love, but also in his account of the reciprocal correspondence of rights and duties, a correspondence that is foreshadowed by the family, presupposed by abstract right and contract, but becomes explicit only at the level of the state"

 

"Three positive forms of recognition: 1) primary relations such as love and friendship, 2) legal relations, and 3) a community of love and solidarity. The three forms of recognition in turn make possible affirmative self-relations. Love makes possible self-confidence, right makes possible self-respect, and social esteem develops self-esteem. There are three corresponding negations of recognition, or disrespect: 1) abuse and rape, 2) denial of rights and exclusion, and 3) denigration and insult"

 

"The institutions of ethical life, including family, civil society, and state, are not heteronomous impositions on or limitations of freedom but rather conditions of freedom's self-realization in the world. Without these, freedom would not be actual and would never achieve a determinate existence in the world. Hegel's concept of Geist cannot be reduced to either the abstract ethical substance of the ancients or the individualistic monological subjectivity of modernity but is an intersubjective alternative"

 

Hegel's Ethics of Recognition, Robert R. Williams

 

A burka e o niqab constituem atentados à liberdade da mulher pois são a expressão da purdah, uma prática que procura anular a sua existência social. Segundo a purdah, a mulher existe apenas e só na família — e esta existência familiar é uma forma de reconhecimento sem o qual ela não seria a mulher que é. O problema é que a família corresponde a uma forma de reconhecimento limitada, isto é, a autonomia da mulher, o seu direito ao livre desenvolvimento da sua personalidade, é amputado pela purdah.

 

A cidadania plena de uma mulher depende desta ser reconhecida na sua individualidade fora do núcleo familiar. Ora, é isso que o niqab e a burka pretendem impedir. A eventual adesão da mulher a esta prática, isto é, a possibilidade da mulher se reconhecer plenamente numa prática cultural que afirma a sua não autonomia, não prejudica o meu argumento. Eu não digo, como o Ricardo, que se deve coagir uma mulher a ser livre. Digo apenas que a purdah é uma prática que atenta necessariamente contra a autonomia das mulheres e que deve ser combatida — não através da sua proibição legal, mas procurando criar as condições para que nenhuma mulher seja cúmplice de uma prática cultural que assenta na negação de uma parte da sua individualidade.


Mutatis Mutandis, é o mesmo argumento que reconhece a possibilidade que certos homossexuais interiorizarem a homofobia da sociedade onde vivem. Ninguém quer obrigar ninguém a sair do armário à força. Mas tal não nos impede de dizer que a homofobia não atenta contra a autonomia e o direito ao desenvolvimento da personalidade dos homossexuais.

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