demónios portugueses
Quando em Portugal se fala em colónias é em África que pensamos. Não na Ásia -- não na Índia, não em Timor, não em Macau – não na América, não no Brasil. África. É lá que se concentra a nostalgia e a amargura, a vergonha e o silêncio da história colonial portuguesa. É em África e naquilo que de África vive em nós e connosco que expiamos o misto de culpa, incompreensão, derrota e raiva que o pós-colonialismo transporta.
Caderno de Memórias Coloniais, de Isabela Figueiredo, editado recentemente, acrescenta, sob a forma de memórias de uma menina nascida em Moçambique (a autora veio de lá aos 12 anos, na grande leva dos “retornados” de 1975 – fenómeno ao qual se começa por mentir no nome que foi dado aos que chegavam, já que muitos “retornavam” a um país onde nunca tinham estado), mais um parágrafo na história não feita da colonização portuguesa. No livro, que num perfil feito sobre a autora para o DN crismei de “carta de amor a um pai racista”, narra-se sobretudo a relação de Isabela com o electricista grandalhão e mulherengo que adorava a filha única e a levava “para todo o lado” e que quando Portugal saiu ficou, com a mulher, enviando-a só no avião para a “metrópole”, onde durante 10 anos, até os pais regressarem, ela viveu de avó em tia, de terra em terra, num exílio de órfã de que ainda guarda cicatrizes.
É um retrato meigo e brutal, brutalmente meigo, assumido pela própria como uma quase traição. Chamar racista ao pai, assumir o racismo dos “colonos”, dos portugueses, dos moçambicanos brancos, do “sistema” – eis algo que garante polémica furiosa. Nos blogues, um universo ao qual Isabela pertence desde 2005 (com o blogue Mundo Perfeito, agora substituído pelo Novo Mundo) e onde iniciou a sua purga – a purga que estas memórias confessadamente são --, as reacções desagradáveis não se fizeram esperar. É normal: ao Público, Isabela afirmou que vê os massacres ocorridos em Setembro de 1974 – e nos quais não pereceu por mero acaso – como “justa retribuição”; ao DN disse que no país em que vivia se podia atropelar um negro e não ir para a prisão.
O mito do colonialismo doce, não racista (não demasiado racista, enfim – um bocadinho de racismo é visto como algo de normal, afinal há “eles” e “nós”) e sobretudo não violento dos portugueses custa a matar, mesmo se nada permite mantê-lo. Nada no passado e nada no presente. Nem em Portugal, onde todos os dias nos cruzamos com discursos e gestos incontroversamente racistas, nem nos lugares onde “estivemos” (nunca esquecer o plural, esta ideia de colectivo) e de onde “saímos” e agora “voltamos”. Moçambique, por exemplo. Fui lá em 1998, de férias, e até hoje não digeri a atitude generalizada de submissão dos negros face ao desabrido trato dos brancos. Mas, pior, não digeri o mimetismo que esta dualidade degradante imprime nos recém-chegados. “Qual a diferença entre um turista e um racista”, foi a pergunta que às tantas me fizeram, na galhofa. A resposta, “15 dias”, é uma espécie de profecia maldita. Sim, um branco em Moçambique está condenado a sentir incompreensão e impaciência, a questionar a dificuldade de comunicação e a estranheza das reacções. Sim, um branco português em Moçambique tem de escolher entre comprazer-se na superioridade ofertada ou martirizar-se na culpa.
Não é só a pobreza, não é só a miséria, não, nem sequer as abissais diferenças típicas do terceiro mundo. É o que, incrivelmente, se mantém (mantinha? Terá mudado em 12 anos o que não mudara em 23?) de um sistema de dominação, mais de 30 anos depois de ele ter sido – era suposto ter sido -- destruído, cancelado, desmantelado. É a vergonha de ver portugueses a tratar negros – todos os negros – por tu, como se os conhecessem de algum lado, como se fossem crianças. É a raiva de ouvir de sul-africanos “os negros daqui são submissos”, como se isso fosse uma qualidade. É a confusão de ser apanhado ali, sem aviso (não, ninguém nos prepara para isso), no meio da história. Da nossa história e dos seus demónios – tão pouco enfrentados, tão pouco exorcizados. E do que deles vive em nós, do que deles somos.
(publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 24 de janeiro)