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ai ai ai minha machadinha

É uma velha canção popular, a história de uma machadinha a quem o dono acusa de ter-se deixado nomear por outro: “Aiaiai minha machadinha/quem te pôs o nome sabendo que és minha”. Responde a machadinha: “Ai se tu és minha também eu sou tua/salta a machadinha para o meio da rua”. Lembrei-me dela a propósito de uma conversa com colegas do jornal. Uma, recém casada, comentou o facto de ter ficado com o nome do marido. Outro, que vai casar, certificou que gostaria muito que a namorada usasse o dele. Quando questionado sobre o porquê do desejo, hesita: “É uma tradição”. O facto de a lei permitir a “troca” de nomes não os estremece. “O meu nome já é muito comprido”, esclarece ele; a recém-casada afiança que isso – o marido ficar com o nome dela -- nem lhe ocorreu. Apesar de andarem nos trinta anos, os dois estão longe de constituir caso raro: conheço muita gente dessa idade, incluindo mulheres de postura dita “independente” e “feminista” e homens “avançados” que no momento de casar assumem a tal da “tradição”. “É uma coisa tão normal”, diz a minha colega, com um encolher de ombros. “Não percebo sequer por que há-de ser uma questão para alguém”. É uma forma curiosa de ver as coisas. Afinal, que há de “normal” em apenas um dos membros de um casal assumir o apelido do outro, e de essa “normalidade” ser determinada em função do sexo? Que haverá de “normal” no facto de aos homens, modo geral, não passar pela cabeça assumir o nome da mulher, mas fazerem tanta questão em que ela assuma o deles?

Conheço casos em que houve aceso debate, no qual o membro masculino do casal argumentava ser uma desconsideração a eventual resistência à adopção do seu nome. Ora, e parafraseando Shakespeare, o que há num nome? Desde logo, um certificado de identidade: eu sou o meu nome. Não há ninguém que não reaja com estranheza ou mesmo agressividade se depara com uma troca, pronunciação ou grafia errada do seu. Assumir a identidade de outrem passa geralmente por “roubar o nome” e fugir à sua por assumir “um nome falso”. Por outro lado, apôr o nome a algo ou alguém é uma afirmação de autoridade e posse, controlo e ascendência. Num interessante jogo de palavras, o psicanalista francês Jacques Lacan assimilou “o nome do pai” ao “não do pai” (o trocadilho só funciona em francês: “le nom du pére/ le non du pére”). Não surpreende que alguém que ama queira certificar de forma ostentatória o vínculo com o objecto ou ser amado. Que outra coisa é a aliança, senão um símbolo anunciado de uma união que é também uma pertença que exclui (supostamente) outras uniões da mesma natureza? Mas, ao contrário da aliança, que é usada pelo dois membros do casal, a transferência do apelido é vista como uma operação não recíproca. Quantas vezes se leu ou ouviu que no casamento “a mulher ‘perde’ o nome de solteira”? Que esta operação de anulação simbólica da identidade surja ainda hoje como “normal” e fruto de um tão arreigado desejo masculino (cuja génese os homens, ao apresentar “o costume” como alibi, parecem ter dificuldade em racionalizar/explicar) devia fazer reflectir sobre a forma como a dominação patriarcal e a submissão feminina permanecem, apesar de estabelecida na lei a igualdade, no cerne das relações entre homens e mulheres, emergindo de modo tão claro naquele que é apresentado como o momento mais romântico do compromisso entre duas pessoas. (texto publicado na coluna 'Sermões impossíveis' da Notícias Magazine de 5 de Agosto -- o texto Malacuecos, publicado uns posts abaixo, saiu a 12 e não a 5, como escrevi)

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