O remorso de gente
Eça traçou-nos o perfil à espadeirada. Se percorrermos os seus romances, contos, cartas, acabamos por dar de caras, aqui e ali, com o filho da mãe e com a prima, com o doutor e com o vizinho. O deputado e a puta. O sério e o trafulha. O circunspecto e o fogoso. O cão e o gato. Eu, tu, ele, nós, vós, eles. Estamos lá todos. Ainda que sem absoluta correspondência, é raro não obter, cortando daqui e colando ali, o retrato de alguém conhecido. Não há defeito ou feitio que Eça não tenha passado para o papel.
De todos os retratos traçados, o mais marcante – por ser o que mais predomina na selva – é o de Dâmaso Cândido de Salcede, o da adresse riscada e corrigida para Grand Hôtel, Boulevard des Capucines, Chambre nº 103.
Ao longo da vida, pude encontrar aqui e ali partes desse ser untuoso, escorregadio e gelatinoso. Desse sujeito em forma de jogo de aparências, onde nada é o que parece mas em quem, paradoxalmente, tudo acaba por ser deliciosamente óbvio. Esses dâmasos da vida encontram-se por todo o lado, aparecem-nos à frente em qualquer tipo de circunstância e ficam ali, presos ao chão por uma mola, a fazer poing-poing-poing.
A partir de certa altura, comecei a encará-los como um jogo com a natureza. A mãe dita coloca-me à frente um dâmaso, ou um braço dele. Nas olheiras de uma segunda-feira de manhã ou nos fumos de um sábado à noite. Na caixa de um supermercado ou de beca vestida. A qualquer momento, em qualquer lugar. É um pacto que temos, eu e a essência. Ela, quando lhe dá na gana, atira-me com um. A minha comissão é dar com ele, apontá-lo a dedo. Normalmente ganho, outras vezes aceito ter perdido, que nem todos são assim tão óbvios – atributo que ganharam quando perceberam o óbvios que são. Folha daqui, ramo dacolá e vão tapando as vergonhas.
Tudo isto para dizer que nunca – mas nunca, mesmo – tinha pensado encontrar O ser em toda a sua grandeza, de forma tão aparatosa, tão óbvia e tão declarada como me aconteceu recentemente. Ao primeiro vislumbre, que nem foi visual, ouvi logo do imenso clarão negro que dali emanava. E o meu coração acelerou – tu queres ver?, pensei.
Era (é) de forma tão esplêndida, o espécimen, que até fiquei algo enfeitiçado, por dessa feita me estar a ser dado como que um prémio por anos e anos de esforço e dedicação à cata de. Parecia o modelo de Eça, o da adresse corrigida ele mesmo. O original tão original que fazia o original parecer incompleto. Até errado. Eis o homem, pensei. E agora vou escrever um livro.
Apareceu de abraço sempre armado, de elogio sebento na ponta da língua e da pena. Mas, dissesse o indivíduo o que dissesse, escrevesse sobre o que escrevesse, eu só conseguia ler algo como isto: “Fizemos armas, bric-a-brac, discutimos... Um dia chic! Amanhã tenho uma manhã de trabalho com o Maia... Vamos às colchas”. Sentei-me e esperei e nunca fui às colchas com ele. Avisei quem tinha de avisar e quem podia dispor-se a ir às colchas. Esperei sentado. Não pelo tempo que a coisa ia demorar – que não perspectivava ser muito –, mas porque queria assistir de cadeira ao espectáculo que eu sabia inevitável, esperando que ninguém querido se magoasse.
Lamentavelmente, não foi assim. Talvez o meu aviso – desculpei-me – tenha sido um pouco tímido, talvez as pessoas não lhe tenham ligado muito. Fosse o que fosse, confessei-me depois, a verdade é quando a coisa se deu – o artigo plantado na Corneta do Diabo – até eu fui surpreendido, sem tempo de ir a correr ao Palma Cavalão (também esta curiosa personagem, director da Corneta, começa por aí a proliferar, qualquer dia dedico-lhe uns louvores).
Não era nada disso. Afinal, também o Eça tinha ficado aquém, percebi então. E eu com ele. Estávamos perante algo de novo, mistura de rematada insídia, intrujice cobarde e tiro nas costas. Qual Cavalão qual quê? O que eu tinha entre mãos era algo bem mais complexo. Não exigia o recurso – ainda que metafórico – a directores de jornais como o Cavalão, corruptos e caluniadores. O caso que se me apresentava, e essa foi a minha falha, é que aquele Dâmaso era auto-suficiente. Um Dâmaso-Cavalão. E nesse caso – pus-me nos sapatos dele –, para quê recorrer a outsorcing?
Com esta mistura explosiva é de chamar cópia ao original, que esse que eu conhecia e tinha antevisto e aprendido era só o velho e gasto Dâmaso. Cobarde, repelente, filho-de-agiota-agiota-é, vigarista, aldrabão, impostor, egoísta, sem réstia de ser homem – um cabrão, em suma. Este, sendo tudo isso, era mais ainda. Uma verdadeira e inútil aberração, espécie de prejuízo de pôr um burro a fornicar uma égua.
Andava ele, soube-se depois, de porta em porta a dizer: eu estive lá e sei dos recônditos. Eu conto! Quem dá mais? Não te chega? Não é suficientemente escabroso? – olha que ele chamou àquele filho da puta. Toda a gente já sabe? Então eu tenho aqui outro segredinho acabado de inventar – podes chamar-lhe investigação, se o publicares. Dou-te o que quiseres, quando quiseres, onde quiseres. É preciso é que me pagues com alguma coisa que me enfraqueça a dor que sinto. A dor de não ser gente.
(eu) Eu não sei o resto da história – que ainda está para vir –, mas adivinho-a. Nada te resolverá o problema, minúscula realidade!, nem à esquerda nem à direita. Nasceste com essa dor de não ser gente e há-de ser essa dor que te há-de enterrar, num cemitério deserto, sem ninguém a acompanhar os teus restos com forma de homem sem nunca o teres sido.
E até na morte serás falso.
É que nas costas dos outros vemos as nossas. Não sabes (eu sei que não), mas ensino-te se puderes: por mais que digamos mal uns dos outros – aquele “nós certos, eles errados” que te chega às ventas –, somos homens e mulheres. Tu és um verme e a gente – gente! – já percebeu.
Nem chegas a ser cabrão, que nem nunca terás quem te possa pôr os cornos. És apenas um remorso de gente.
(também no homem-garnisé)