a vizinha oculta
Foi em plena Baixa lisboeta, num dia de calor, que a vi pela primeira vez. A maioria das mulheres de alças, decotes, calções, e a três metros de mim esta figura esbelta envolta em véus negros que avança. Quase congelo de espanto – mas faço o papel de urbana sofisticada. Limito-me a interrogar-lhe os olhos muito escuros, delineados a khol, olhos muito jovens que parecem devolver-me a curiosidade. Ela passa, eu passo. O inopinado do avistamento faz-me descrer dele. Uma mulher tão jovem, tão velada, no centro de Lisboa? Vira outras como ela na Jordânia, no Iraque. Sempre bizarras, nunca reduzidas a hábito – não no meu olhar. Mas em Lisboa, a minha Lisboa, a jovem de negro parecia-me impossível. Voltei a vê-la. A segunda vez, como num postal encenado, recortada contra a Sé de Lisboa, acompanhada de uma freira idosa. Parece, bem sei, ilustração a traço grosso da discussão sobre o véu islâmico, na qual não raro se tem trazido à colação o estrito hábito das monjas católicas para alegadamente demonstrar o relativismo dos conceitos, das observações e das indignações. A terceira vez que a vi estava com um homem de barba e duas ou três crianças. O homem ia à frente e ela seguia, passos atrás. Em todos estes encontros pensei: da próxima vez tentarei falar com ela. Saber quem é, que idade tem, o que faz. Como vive, como se vê a ela e ao seu véu e como vê mulheres como eu, que a olham como uma prisioneira.
Mas nunca o fiz. Não percebo porquê: o que um jornalista mais faz na vida é meter-se na vida dos outros. Ser indiscreto, agressivo, abelhudo. E se há coisa em relação à qual me apetece ser abelhuda é esta história do véu islâmico. Não tenho sobre ele qualquer das contemplações que uma parte da esquerda dita clássica exibe. Não vejo que possa ser defendido como “uma prerrogativa cultural legítima” quando é imposto em nome da ideia de uma diferença fundamental entre sexos. Nem que possa ser, como sinal exterior de religiosidade, comparado ao hábito de uma freira católica – que na actualidade ocidental só poderá ingressar numa ordem quando adulta, responsável legal pelas suas decisões. Impor um véu a uma criança de oito ou dez anos, que é o que sucede na tradição islâmica fundamentalista, é aliás muito semelhante a agarrar numa criança da mesma idade e interná-la num convento. Já se fez na Europa, decerto – mas hoje a maioria dos europeus (ou assim espero) consideraria tal um atentado aos direitos humanos. Por outro lado, defender que as mulheres adultas inseridas em famílias ou países islâmicos têm a liberdade de optar nesta matéria é ignorar a existência de leis, nalguns desses países, que punem as que não usam véu e de uma “tradição” que legitima matar uma mulher que “desonra” a família ou a religião (que, parece, irão dar no mesmo) -- tradição mantida, como se sabe, mesmo nos países ocidentais. Não sei se a minha vizinha está em condições de distinguir uma escolha de uma imposição. Se é com orgulho que atravessa as ruas de Lisboa, como um arauto da verdade, ou se deseja poder mandar o véu às urtigas e estender-se ao sol de bikini. Talvez nunca o saiba. Porque é minha vizinha, e há nisso um pacto. O pacto que diz: viveres ao meu lado não me dá o direito de te impor o que acho melhor para ti. Chama-se a isso respeito, creio – o respeito que a maioria dos lisboetas manifesta, ao vê-la passar com surpresa mas sem agressividade – e é o mais subversivo dos princípios. Desde que, bem entendido, se não cometa o erro de o confundir com indiferença, medo ou vertigem ética. (texto publicado na coluna Sermões Impossíveis da Notícias Magazine de 19 de Agosto)