bicicletas partidas
Este ano morreram-me o aspirador e a máquina de lavar roupa. Tinham a mesma idade, 17 anos. Entre um e outro, morreu-me um secador de cabelo com um ano e pouco. O secador morreu de homicídio negligente (ou suicídio?): precipitou-se do balcão da casa de banho e zás. Sobre o aspirador e a máquina tenho as minhas suspeitas (malfeitorias alheias), mas certo é que estavam velhos. Segundo a DECO, lá naquela revista que dá pelo nome de Proteste, a vida média dos electrodomésticos é – com sorte – de cerca de 15 anos. De modo que. O problema é que a partir de tanto tempo de convivência com uma coisa a gente começa a habituar-se à ideia da eternidade (um paradoxo, portanto: é claro que sendo as coisas o que são, quanto mais tempo dura a convivência mais provável é que esteja para acabar). E assim, quando ocorre o pior, queremos encontrar motivos. Culpados. Consolar-nos da ideia de que nem as máquinas, e ainda por cima as máquinas domésticas, são fiáveis, de que nem com elas podemos contar. De que o acaso e a incerteza regem tudo, que não podemos ter nada como certo.
Por exemplo: esta semana descobri que um candeeiro dos anos 50 que era do meu pai e que, por motivos estéticos e sentimentais, é uma das minhas peças de mobiliário favoritas, tinha a ficha partida. A ficha, como o candeeiro, é mais velha que eu. Aguentou cinquenta e tal anos até vir partir-se, sem motivo plausível, na minha sala. Acho isto de uma tão enorme improbabilidade e injustiça que quase sinto a necessidade de me justificar perante o candeeiro: como é que, gostando tanto dele e tendo feito fé de o salvar do ferro-velho, o deixei assim ficar mal? Trata-se apenas de objectos, claro. Mas que é isso de “apenas objectos”? O investimento afectivo em entes inanimados, sejam casas ou sapatos, relíquias ou carros, canetas ou brinquedos, relógios ou símbolos religiosos (passando pela mais óbvia das relações apaixonadas entre pessoas e objectos, a que ocorre com a arte), é algo a que ninguém é alheio. Mais ridículo é reconhecê-lo na convivência diária com uma torradeira ou na resistência a mandar fora aquilo que envelhece e se gasta. Claro que, dezassete anos depois do nascimento da minha máquina de lavar roupa, as máquinas de lavar roupa são muito diferentes e supostamente melhores. Claro que há muita gente que nem espera que as máquinas morram para as substituir por outras mais avançadas, mais eficazes, mais bonitas, mais ecológicas, que nem perde um segundo a pensar no assunto ou a associar essa substituição indiferente à cruel e fundamental transitoriedade das coisas. Aquilo que mais comove na morte dos objectos de uso quotidiano e banal que reputamos de indispensáveis é, precisamente, a paradoxal ideia da sua dispensabilidade, a facilidade com que são esquecidos e substituídos uma vez cumprido aquilo a que se dá o nome de “vida útil”. Vida útil, pois. Um interessante conceito que pressupõe a existência de uma vida inútil – aquela que ocorre para além do abandono e cuja infinita melancolia Tom Waits tão bem canta em Broken bicycles (“Bicicletas partidas, velhas correntes estragadas/ Com guiadores estragados lá fora à chuva/Alguém deve ter um orfanato/ para todas estas coisas que já ninguém quer para nada”). Claro que Waits está a falar do fim do amor, do tempo, das coisas sem remédio. De torradeiras como nós, enfim. (publicado na coluna Sermões Impossíveis da Notícias Magazine de 26 de Agosto)