Espelho de um povo
Numa altura em que todos se entretêm em lucubrações sortidas e normalmente maledicentes sobre a nossa classe política, ainda não vi nenhuma reflexão sobre o que me pareceria evidente: que os políticos que temos são o retrato do país que somos e que continuaremos a ser enquanto todos nós, como sociedade, não evoluirmos comportamentos diferentes.
O que me aconteceu hoje de manhã - e me deixou profundamente irritada - exemplifica porque razão urge essa reflexão. O equipamento que há cerca de um ano ando a tentar comprar, chegou ontem à noite, finalmente, ao aeroporto. A nossa legislação concede franquia aduaneira na compra de materiais destinados a investigação científica - e eu sou portadora de uma declaração da Direcção-Geral das Alfândegas afirmando isso mesmo para este equipamento em particular. Depois de informada pelos serviços adequados do que necessitava fazer, dirigi-me cerca das 9 h para o terminal de carga do aeroporto, munida de toda a documentação necessária, para levantar o equipamento. No Edifício 133, depois de pagar 12 euros, muito rapidamente fiquei portadora de um dos dois documentos em falta, a carta de porte. Faltava-me apenas um, que me informaram ser tão rápido e fácil de obter quanto aquele, que me seria fornecido no edíficio ao lado, o 134, onde funciona a alfândega - e onde estão instalados os despachantes.
De facto, a coisa parecia estar a correr rapida e facilmente até o preço do equipamento vir ao barulho. Aí, a funcionária, inenarrável, que me atendia mudou o discurso e o procedimento passou a assumir uma complexidade tal que a senhora precisou, subitamente, ir investigar os trâmites necessários.
Ao fim de uma hora de seca, informou-me muito atabalhoadamente que, por razões de estatística (!?), eu precisava preencher um documento único, um tal de DU, de tal forma complexo que o melhor era ser um profissional, um despachante ali mesmo ao lado, a preenchê-lo. Só depois de eu ter exigido falar com a directora de serviço, a senhora muito corada, me indicou onde eu podia comprar o tal DU (que estou a preencher neste momento com a ajuda de colegas meus que passaram por pesadelos semelhantes). Toda a conversa decorreu nuns moldes tais que foi claro, quer para mim quer para o funcionário do Técnico que me acompanhava, aquilo que a senhora, ainda muito corada, negou às secretárias da directora: que me estava a empurrar para um despachante - o mesmo que depois lhe entregaria a tal DU complicadérrima já que é ela que trata deste tipo de coisas isentas.
Não há nada na lei que obrigue ser um despachante a levantar qualquer coisa da alfândega nem, estranhamente, parece haver uma tabela fixa para o serviço. No meu caso, aquilo por que paguei 15 euros, mais concretamente 14,95 euros, andei entretida nestes meses de espera a tentar saber quanto custaria se fosse um despachante a fazer. O preço que me foi pedido oscilou entre 7200 euros, isso, sete mil e duzentos euros, e «alguns centenas de euros, só na altura se pode dizer». Não faço ideia quanto me seria cobrado pelo tal despachante ali mesmo ao lado mas seria certamente muito, mas muito mais do que os 15 euros que custam os dois documentos necessários.
Coisas destas acontecem em todo o lado, procedimentos que são baratos e deveriam ser simples e automáticos assumem, na boca de funcionários de serviços sortidos, complexidades inexplicáveis (e inexistentes ou que eles mesmos criam) que só podem ser resolvidas por meia dúzia de eleitos iluminados que se fazem cobrar bem pelo serviço.
Não percebo nada de direito e portanto não sei se isto configura algo ilegal mas parece-me que esta anormalidade instalada é muito propícia a corrupçõezinhas sortidas, daquelas que não fazem manchetes de jornais mas que mancham inexoravelmente um povo complacente com este estado de coisas. Enquanto o tolerarmos, este estado de coisas, e não recusarmos sermos cúmplices delas, não temos, penso eu, autoridade moral para nos indignarmos com coisas que são, na essência, igualzinhas. Dá trabalho e maçada, eu sei, mas aceitar comportamentos destes só porque generalizados ao nível do manga de alpaca é, outra vez para mim, a banalização do mal de que depois nos queixamos.