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das coisas descontinuadas

Tem dias em que sou uma conservadora. Uma totalitária dirigista anti-liberal. São os dias em que descubro que fechou mais uma das minhas lojas favoritas ou que uma marca de cosméticos acabou com a cor de baton ou de verniz perfeita. Dá-me uns nervos com o mercado que só me apetece instituir uma ditadura do tipo: não acabam as coisas boas. Não se substituem as coisas boas e únicas por coisas iguais às outras todas. Não se põem a mudar o mundo sem me pedir licença.

Infelizmente para mim e felizmente para a economia, para o mercado e para a liberdade comercial (e em geral), não mando nada. E assim as coisas continuam a acabar. Continuo a anotar com melancólica fúria as ausências no meu circuito emotivo e comercial, na geografia das minhas voltas. A tabacaria onde mandava guardar as minhas revistas favoritas estava um dia, sem aviso, trancada. Era a referência das tabacarias da Baixa, o Adamastor, ao fundo da rua do Carmo. Oferecia todos os jornais e revistas estrangeiros e aquela maravilhosa sensação de familiaridade que advém de colocarem sobre o balcão aquilo a que vimos mal nos vislumbram à porta. Como o Adamastor, foram-me desaparecendo, ano a ano, quase todas as “minhas” lojas da Baixa – a casa Penim e as Galerias Rivoli, na rua Augusta; a Tatá Rodrigues, os Davids e o Ramiro Leão, na rua Garret; a casa Ana, um 4º andar da rua dos Sapateiros onde um velhinho guardava acintosamente um manancial de tesouros – colares e contas e anéis de cristal dos anos 50, sapatos dos anos 40, fivelas e cintos com décadas de pó e armazém e o que mais lá havia que não descobri e que a ele já não lembrava --, só disponíveis para quem se dispusesse a passar uma tarde à conversa com ele. A casa Sibel, um sexto andar na Rua dos Correeiros onde se confeccionavam cintos e onde a simpatia da proprietária permitia mandar fazer peças únicas, mais o Lopes & Lopes, uma loja/oficina na Praça da Figueira onde se vendiam cabedais e camurças e se mandavam fazer carteiras de senhora, cortar cotoveleiras e cintos, cravar molas e tachas. Agora foi a vez da mais faustosa das sobreviventes da Baixa-Chiado, a Casa Souza. Os souzas, como era conhecido o salão na rua Garret, eram uma instituição. Tinham os mais belos tecidos de Lisboa – as melhores sedas, os melhores linhos, as melhores lãs e veludos, dois lustres fabulosos, mobiliário de madeira e uma clientela que acumulava velhas duquesas e modistas com novos estilistas e gente que, na época da Zara, mantém alergia ao pronto-a-vestir. Os preços quase sempre pouco convenientes eram compensados pela secção de retalhos, um festim de cores e texturas em saldo permanente. Vendido à Boss o espaço, os lustres vão para o palacete de uma das clientes e, adivinha-se, a mobília vai ser substituída por umas coisas metálicas, iguais às das lojas Boss de Milão, Singapura e Moscovo. E a casa Souza, que a família do mesmo nome passou há poucos anos para novas proprietárias, vai instalar-se noutro espaço, decerto mais pequeno e inevitavelmente sem a nobreza que lhe fez a lenda. Bem sei ser normal que, como diz a gíria comercial, as coisas artesanais e únicas sejam “descontinuadas” em benefício da uniformização e da impessoalidade. Bem sei que acabam estas coisas porque os clientes delas rareiam, que a hecatombe da memória que foi o incêndio do Chiado se prolonga no silêncio destas mortes sucessivas. Bem sei que não há nada que eu possa fazer. Mas cada um tem os seus moinhos de vento. (publicado na coluna Sermões Impossíveis da NM de 16 de Setembro)

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