pena e psicoterapia
Há umas semanas, escrevi aqui sobre uma amiga que está apaixonada por uma mulher e que é correspondida. Falei das dificuldades dessa relação, da forma como tanta coisa que é considerada normal e desejável e, sobretudo, espontânea é dificultada ou mesmo impossibilitada por um contexto social e cultural que trata o amor entre pessoas do mesmo sexo como uma aberração e uma ameaça. Ver uma relação de amor consentânea entre adultos como uma ameaça social é algo que, confesso, ultrapassa a minha capacidade de entendimento. Não creio, aliás, que haja alguma forma de explicar esse tipo de atitude que a do mais puro e tenebroso preconceito, aquilo a que se chama fobia. Um sentimento que nada tem de razoável ou racional, e que retira a sua virulência de uma caldeirada de temores, atracções e recalcamentos que são decerto muito interessantes para especialistas mas que só servem para fazer o mundo um lugar mais perigoso. Vem isto a propósito da carta de um leitor que, em reacção ao meu texto, começava por dizer que tinha “pena” da minha amiga. E que lhe aconselhava, para fazer face à situação em que se encontra, o recurso a psicoterapia. Para este leitor, a minha amiga, uma mulher de 30 e tal anos que se apaixonou por outra mulher da mesma idade e que tem de, diariamente, medir os gestos e as palavras para não ter de lidar com a incompreensão e a agressividade das pessoas que acham isso impensável e inaceitável, é que tem de, digamos, se emendar.
Para este leitor, não são as pessoas que, conhecendo a minha amiga, mudam de opinião e de atitude por saberem que ela, em vez de gostar de um homem gosta de uma mulher, que têm um problema. Não são as pessoas que se a virem na rua de mão dada com a namorada a insultarão e os colegas ou patrões capazes de a ostracizar e de a conduzir ao despedimento ou os que acham que a paixão dela é uma espécie de vírus da perdição que precisam de tratamento. Não são os legisladores e sacerdotes que em tantos países do mundo, incluindo vários estados dos EUA, criminalizam o amor dela, chegando a castigá-lo com a pena de morte, que estão doidos. Ela é que tem de ir à consulta. Estou certa que o leitor que enviou esta carta se considera boa pessoa. Que não se vê como capaz de condenar alguém à infelicidade e a uma vida clandestina, quanto mais à prisão e à morte. Que acredita mesmo que está a lutar pelo bem ainda que, quando escreveu a carta que enviou à NM, não foi decerto capaz de, nem por um instante, imaginar-se no lugar da minha amiga, ou de pensar que pode haver, ao seu lado, na sua família, entre os seus amigos, pessoas que as suas palavras iriam magoar profundamente. Não: o leitor acha-se um justo. Quando escreve que sente pena, o que está a dizer é que se considera melhor e mais correcto que a minha amiga, capaz de lhe dizer o que está certo e errado. Que ela deve, se insistir em amar uma mulher, viver esse amor escondida e temerosa e envergonhada, sem jamais se arrogar o direito de o proclamar e consagrar publicamente. O que o leitor diz é que o amor que ela sente a torna menos digna. A faz menos que ele. É porque há tanta gente como o leitor da NM que se fazem festas do orgulho gay e festivais de cinema queer como o que esta semana decorreu em Lisboa. É, digamos, uma forma pública de terapia. Para toda a gente. Um dia virá – e desenganem-se os que o temem, porque é inevitável – em que estas festas e festivais vão deixar de fazer sentido. O dia em que a pena que o leitor impõe à minha amiga seja vista por todos como a aberração e a ameaça que é. (publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 23 de Setembro)