por amor de deus
Gosto da palavra deus. É mesmo das palavras de que mais gosto. Gosto da estética, do som e do sentido. Gosto tanto que a uso muito. Dou comigo a repetir “ó, deus”, em voz alta, quando alguma coisa me irrita ou desconsola e quero remeter as causas da irritação e do desconsolo para a inevitabilidade das coisas inevitáveis. Digo “que mal fiz eu a deus” quando me sinto injustiçada, “vai com deus” quando quero mandar alguém passear, “por amor de deus” quando algo me surge como incompreensível, gratuito ou disparatado, quando exijo a atenção de alguém, quando faço um apelo desesperado.
São expressões curiosas, interpelações poderosas. Mágicas, rituais, blasfemas: é a isto, a esta utilização banal, coloquial, creio, que se chamava “invocar o nome de deus em vão”. Não sei em que pensa ou o que sente alguém que crê na divindade quando as repete. Se ao dizer “deus” vê a figura de barba branca e vestes épicas da Capela Sistina, o luminoso dedo da criação, o poder dos céus, infinito e imponderável, tão ubíquo quão terrível e indiferente. Mas eu, ateia do trinta costados, que vejo? Por que invoco uma entidade em que não creio? Há para esta pergunta muitas respostas. A mais usual, repetida pelos crentes, é de que, por definição definido em relação à ideia de deus, o ateu vive obcecado por ela. Há até quem assevere que o ateu é uma espécie de fervoroso crente “ao contrário”, e que a sua crença “negativa” corresponde na verdade a um desafio permanente, a um “diálogo” com a divindade. Acho graça a esta explicação: parece que certos crentes não concebem outra possibilidade senão a de acreditar e, como encaram o ateu como oposto de si próprios, se eles amam deus e o vêem em todo o lado e lhe agradecem todas as coisas, então o ateu só pode odiá-lo, querer bani-lo. Ora eu, ateia, confesso que não quero banir deus para lado nenhum. A ideia de deus comove-me. Comove-me esta possibilidade de um interlocutor silencioso que apaziguasse o silêncio, de um ser que olhasse para mim e por mim, que me amasse mesmo nos meus piores e mais inconfessáveis momentos, me confortasse no desespero e me abraçasse na morte. Comove-me essa tão pungente criação contra a solidão e o vazio, essa tão admirável obra de arte que, embora muito abusada e manipulada para horripilantes fins, se mantém intocada ao longo dos milénios na sua inútil perfeição. Não gosto das religiões, é certo. Não gosto da organização, das instituições, dos ditados. Não gosto dos que traduzem a ideia de deus em intolerância e totalitarismo, dos que dividem o mundo em inimigos mortais, dos que prometem esquartejar e queimar todos os que não alinham nas suas hordas (e todos os livros ditos sagrados o fazem). Mas não confundo a noção de deus com os seus auto-proclamados profetas, com os seus instrumentalizadores, com os impérios da fé. Nem com um nome próprio deste ou daquele mito. Não: deus é uma palavra autónoma, desenhada para nomear os mistérios, para configurar tudo o que nos escapa, tudo o que não controlamos, tudo o que é maior que nós, tudo o que é inelutável, tudo o que nos falta. Aquilo a que se chama “uma força de expressão”. Quando digo “por amor de deus”, não estou decerto a dizer que amo uma dividade ou que presumo que o meu interlocutor a ama. Estou apenas a usar uma frase poderosa, uma súplica, um desabafo aculturado. A reconhecer que não bastaria dizer “por amor de mim”, ou “por amor de ti”. Outros usam outros palavrões – eu uso deus. É mais bonito. E se alguém se ofender com isso, paciência. Que deus lhe perdoe. (publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 7 de Outubro) em adenda, duas leituras deste texto.