Uma reflexão e mais qualquer coisinha
Para início de conversa importa esclarecer que bullying não significa "violência em meio escolar", daí que me pareça forçada e desadequada, para não dizer pior, a relação que alguns estabeleceram entre o suicídio de um homem (professor) de 51 anos na Ponte 25 de Abril, no início de Fevereiro, e o de um rapaz (aluno) de 12 anos no Rio Tua, no início de Março - repescar o primeiro caso, decorrido que estava quase um mês, e emparelha-lo ao segundo é, no mínimo, de um mau gosto sem nome e um péssimo trabalho informativo.
Centremo-nos, então, no suicídio do docente e na maneira como o assunto foi tratado pelos media. Desde logo importa clarificar que, ao contrário do que erradamente é sugerido por diferentes títulos - "Professor vítima de bullying preferiu morrer a voltar ao 9ºB", "Professor vítima de bullying tinha 'fragilidade psicológica'" ou "Bullying a Professores - Professor de música atira-se ao rio para não enfrentar os alunos", por exemplo - o caso em apreço não configura um exemplo de bullying.
O suicídio é um comportamento complexo que de todo pode ser atribuído a um factor causal único. Como já escrevi, pode surgir na sequência de diferentes situações vivenciais e não é um sintoma específico de nenhuma patologia psiquiátrica - em rigor, pode acontecer mesmo na ausência de doença mental. Deve-se, por isso mesmo, ter atenção e cuidados redobrados na procura de relações causa-efeito. São vários e de diferente ordem os factores predisponentes, desencadeantes e de risco para a ideação suicida e para o suicídio consumado, que na maioria das vezes coexistem e têm efeitos sinérgicos. Donde não se poder dizer, 'aprioristicamente' e sem outro tipo de investigação, que este professor escolheu suicidar-se a ir dar aulas ao 9º B ou que se atirou ao rio para não enfrentar os alunos, é errado e grave, sendo imprevisíveis as consequências deste tipo de afirmações. Qual será a sua contribuição como factor desencadeante de uma tentativa de suicídio nalgum daqueles adolescentes? A quem imputar responsabilidades?
Desconheço em absoluto, ainda que tenha procurado dados sobre o assunto, a existência de uma taxa aumentada de suicídio nos professores por comparação com a população geral, nomeadamente em Portugal, mas a crer no que li e que foi afirmado por especialistas na área dos estudos sobre suicídio "a experiência e dados internacionais mostram que os professores não estão, "nem de longe nem de perto", entre as profissões de maior risco". Desconheço, também, a história clínica pregressa deste homem, não sei, por exemplo, se algum dia já tinha feito uma tentativa de suicídio. Pela imprensa apenas sei que era "há anos" acompanhado por um "psicólogo" que lhe havia sugerido "que metesse baixa" e que "a família reconhece que "era uma pessoa que se isolava e emocionalmente frágil"". Seria muito interessante e esclarecedor a realização de uma autópsia psicológica.
Dito isto, nada exclui que o risco de exaustão física e psicológica, conhecido na literatura como Síndrome de Burnout, seja uma realidade em algumas profissões, nomeadamente nos professores, mas a questão do suicídio de um docente não pode ser vista de um modo tão simplista em termos de relação causa-efeito. O 'terreno humano' é importante. Como dizia Beck, um psicólogo cognitivista, "não deprime quem quer, deprime quem pode, um psicopata não deprime", isto para relevar a importância dos factores individuais no adoecer depressivo. Por outro lado, assumir que os quadros depressivos estão maioritariamente na base dos suicídios dos professores é uma afirmação que não se pode fazer e, muito menos, extrapolar para o geral o suicídio de um professor que porventura teria uma patologia psiquiátrica prévia, não forçosamente reactiva ao desempenho profissional mas eventualmente por ele agravada. Nada disto está esclarecido.
Que se pretende com estas "notícias"? Qual é, aqui, o material noticioso? O suicídio não me parece, até porque a sê-lo viria com um mês de atraso. A eventual não resposta às participações feitas pelo professor deve ser averiguada e esclarecida, sobretudo importante para apaziguar a família, mas irão concordar que como noticia é frouxo. Se algum facto noticioso existe é a indisciplina e a violência na escola, concedo, mas não posso deixar de anotar que o assunto não é novo e que abordá-lo desta maneira me parece contraproducente e enganoso - não é assim que se faz prevenção do suicídio em ninguém, nem mesmo nos professores. Tal como Pedro Frazão, penso que tudo isto nos alerta "para a necessidade de formar os professores para lidarem com a indisciplina e a violência, mas com o objectivo de combater estes fenómenos e não de evitar o suicídio dos docentes", que fique claro.
Porque o efeito psicológico do suicídio é devastador, em particular nos que estão mais próximos de quem o comete, compreendo a dificuldade que esta família está a ter na gestão de um acontecimento tão brutal e que necessite ver respondidas algumas questões que a atormentam, já compreendo menos bem que peça "debate" e, sobretudo, que os jornalistas se permitam ser veículos desse pedido. Que vítima de bullying que quê, senhores jornalistas? E o que dizer da leviandade de estabelecer, sem mais, uma relação causal destas ou da alarvidade de noticiar assim, também sem mais, as alegadas fragilidades psicológicas do homem? E que tem o senhor da DREL de andar a prestar declarações deste tipo? Quantos inquéritos foram abertos aos suicídios de vários agentes de segurança ocorridos no ano passado? Onde está o inquérito aberto ao suicídio daquele jornalista da TVI que, há uns anos, morreu usando exactamente o mesmo método?
Uma última palavra de indignação vai directamente para o abusivo e indecoroso aproveitamento 'sindical' do caso. Não consigo conceber, e muito menos aceitar, que à boleia de um suicídio venha a conversa do aumento do número de reformas antecipadas entre os professores, com consequentes perdas pecuniárias importantes, para já não falar dos ganhos secundários que, perversamente, são feitos à custa da desgraça alheia. Ler, a propósito do assunto e escrito pelo punho do sindicalista António Avelãs, frases reaccionárias do tipo "Mas um professor fica ferido na sua dignidade e no seu amor-próprio quando se vê obrigado a “dar apoio” a alunos que não vão às aulas porque não querem, ou que vão apenas para provocar e perturbar a turma" e que a escola "começa a não ser viável" seria risível se não fosse trágico. Haja alguma razoabilidade, pode ser?
(Versão post do artigo de opinião no Público de hoje, à espera que alguma alma caridosa me arranje o link)

