a minha avó republicana
Para quem nasceu numa república, mesmo se sob Salazar, a ideia da monarquia surge como qualquer coisa de tão distante que chega a ser romântica. Criança, lembro-me de adorar “a Inglaterra” (que para mim era um país que incluia aquilo a que se dá o nome de Reino Unido ou Grã-Bretanha) e a sua rainha. É normal, creio, gostar de rainhas e reis e princesas e princípes quando se é menina, embalada por mil contos de Perrault e Andersen, cinderelas, brancas de neve e anões. Uma amiga minha, que cresceu no Estoril, vizinha do exílio dos reis de Espanha, chegou até a dizer à mãe, quando ela um dia lhe disse que podia ser tudo o que quisesse, “Então quero ser princesa”. Não sei quando ouvi falar do regicídio, da morte à bala de Carlos I e do seu primogénito, mas estou certa de o ter lamentado, de ter sonhado com capas de arminho e coroas e ceptros e tronos e cavalos garbosos e galgos russos em caminhadas lentas nas passadeiras escarlate em vez do preto e branco cinzento e desafinado dos homens que reinavam. A república e a sua implantação só se ergueram como épico deslumbrante e libertador no dia em que a minha avó paterna me contou, numa das tardes em que às vezes me deixavam com ela, a fazer biscoitos e a ouvir histórias, a sua visão da coisa.
A minha avó Ana. A avó Ana, que foi definitivamente a minha preferida – sei que estas coisas não se devem confessar, quanto mais proclamar, mas os meus avós estão todos mortos e já não se ofendem – falava comigo como acho que mais ninguém falava, de coisas de que ninguém me falava. Coisas sérias, como se eu fosse adulta e percebesse. Não sei, nunca soube nem perguntei, se teve essas conversas com a minha irmã e as minhas primas – com os meus primos não teve decerto, por alguma razão não gostava de rapazes, só queria as meninas com ela, ela que teve quatro filhos rapazes (dois dos quais mortos bebés) e apenas uma rapariga. A avó Ana falava-me de muita coisa. Do cão que teve quando pequena e que apanhara raiva e fora abatido (e chorávamos as duas), mas também do fim da fé no deus católico que os seus pais e ela tinham decretado quando um irmão adoecera e morrera. Foi a primeira vez que percebi que alguém se podia zangar com o até então para mim inegável ente e despedi-lo por flagrantes maus serviços – e sobreviver, e viver até ficar velho, e ter netos, e fazer biscoitos. A avó Ana falava-me da forma como as meninas como ela eram, no início do século XX e apenas por serem meninas, impossibilitadas de prosseguir os estudos, porque havia pouco dinheiro e se dava primazia aos rapazes, porque não era costume, porque as raparigas eram para casar e ter filhos e não para serem “alguém”, mesmo se queriam muito estudar – ela queria – e se os professores a elegiam a mais brilhante das alunas. E a avó Ana falava-me da república. De como a vira, criança como eu, às cavalitas do avô. De como assistira à celebração do povo, à festa das ruas, de como, apesar do perigo e da instabilidade, o adulto fizera questão de mostrar à neta um mundo novo, o mundo sem rei – e talvez, digo eu, sem senhores, mas isso é outra história, com e sem agá grande -- com que sonhara. De como ainda exultava da experiência e da felicidade do avô, de como repetia, com orgulho, como quem ergue em estandarte as armas da família: “Ele foi sempre contra a monarquia, era republicano. Era pela igualdade entre as pessoas”. Acho que nesse dia, por osmose e comoção, percebi a ideia. E fiquei republicana, como a minha avó Ana e como o meu bisavô cujo nome não sei e cuja memória é para mim a desse dia, 5 de Outubro de 1910, e essa imagem, a de um homem com uma menina às cavalitas no meio do vento da história. (publicado na coluna 'sermões impossíveis' da nm de 14 de outubro)

