O rancor
É uma palavra feia. Rancor. Tem som de ódio, cor de desadoração. Cheira a aversão, o toque reage-lhe com repulsa, às vezes com (mera) embirração. Tem sabor de orgulho que cega. É uma palavra feia, pois. Ai de quem, coagido pelos sentidos reféns — dizem que são cinco nos homens, seis nas mulheres (o que as desculpa ainda menos) —, se aconselha por ela. O cheiro da sobranceria, o barulho do tijolo cru, a imagem do berro que ninguém compreende, a sensação da razão em fuligem. E tudo assim preferir, alimentando-se da altivez de quem prefere cair a agarrar-se.
Com rancor se faz e se desfaz. Países e paixões. Não sendo o rancor, o mapa dos homens seria talvez diferente, conceda-se. Estaríamos a falar inglês, alemão, castelhano. Latim? O rancor é também nosso, português e mais, e ai de quem nunca por ele se alumiou. Alucinou. Porque fomos rancor, somos (usem a desculpa com moderação).
Ao nascer, berramos raivosos. Ao morrer, gritamos vingativos. A causa é a mesma: rancor. A puta da luz que nos ensombra. Assombra?
Há, porém, quem pareça decidir viver assim, respirando só esse estar — certo da certeza de que a culpa não lhe pertence. Ainda que não haja culpa, ainda que as coisas sejam mesmo assim. Ainda que o delito seja das coisas que são. Só por serem.
Às vezes (quase sempre), o rancor serve apenas para roer a alma (a nossa e a dos outros), que os países já se inventaram e as paixões repousam na serenidade do que é ou do que foi. É também isto, o rancor: exculpação, projecção no outro do que correu menos bem.
Em suma, e do rancor: às vezes sim, outras vezes não.
(também neste arquivo de coisas)