num lugar tranquilo
Leio a história nos jornais. Começa a ser aparentemente tão comum, a história (apesar de ser tão absolutamente excepcional), que nem dei por ela no dia em que aconteceu. Desta vez foi na Finlândia. Ele - é um ele, como de costume - tinha 18 anos e, como vai sendo costume, fez um vídeo a anunciar o feito. Pekka-Eric Auvinen vivia numa cidadezinha que as notícias descrevem como "pacata". Um "lugar tranquilo", diz um texto, depois de descrever a forma como o rapaz mais a sua Sig Sauer de calibre 22 andaram pelos corredores do liceu onde ele frequentava o último ano a disparar sobre quem aparecesse. Oito morreram logo ali - a directora da escola, cinco rapazes e duas raparigas -, e há uns 20 feridos graves. Isto tudo num lugar tranquilo, num país tranquilo onde o Governo convocou uma reunião de emergência e os jornais e as TVs vão fazer especiais e debates, esquadrinhar a vida e as referências, as leituras e os gostos e as relações do "rapaz muito sorridente" que fez "aquilo".
Vai-se falar de Rammstein, a banda heavy de som tenebroso que Pekka-Eric ouvia, como se falou de Marilyn Manson a propósito dos dois liceais americanos que puseram o liceu de Columbine no mapa-múndi. Vão-se decompor, ler e reler e repetir as palavras declamadas no vídeo-testamento que Pekka-Eric deixou no YouTube (retirado após 200 mil visitas): "sou um cínico existencialista, anti-humano humanista, anti-social-darwinista e uma espécie de deus ateu" e o dizer na T-shirt negra da imagem em que empunha a pistola: "Humanity is overrated" (a humanidade é sobrevalorizada). Vai-se falar de niilismo e de Nietzsche e de internet - porque ele era fã de Nietzsche e do niilismo e, obviamente, frequentava a net. Mas quando ele diz "ódio, estou cheio dele e adoro-o", lembro como adolescente adorei Almada Negreiros e a sua Cena do ódio e idolatrei Nietzsche e tive, como tantos adolescentes, o culto do suicídio e dos suicidas e da morte, cultivei a mesma cor - o negro - e a mesma ideia romântico-trágica da existência e vivi nos mesmos lugares tranquilos - todos os lugares são tranquilos até acontecerem estas coisas (ou outras igualmente horríveis, como a morte de um homem que os "amigos" deixaram uma madrugada amarrado à porta de um café). Mas eu, como milhões de outros adolescentes, não fui o Pekka-Eric. Porquê? Porque não era o Pekka-Eric, porque não me tornei o Pekka-Eric. Nenhuma explicação para isso, nada para perceber a não ser que aconteceu e que, por isso mesmo, exerce sobre nós, todos nós, um inquietante fascínio. Gus Van Sant fez um filme sobre isso (Elephant, 2003), sobre a perplexidade e o silêncio e o horror e ainda outra coisa mais terrível ainda: uma espécie de serenidade. A do lugar tranquilo, sem noção de culpa (pelo contrário - "Sou a lei, o juiz e o executor, não há maior autoridade que eu", sentenciou Pekka-Eric), de onde nos olham estes pequenos anjos vingadores: a redenção que tanto queremos não é para eles, é para nós. (publicado hoje no dn)