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eu e 'a igreja'

 

Ai, as vezes que nas últimas semanas li que “querem destruir ‘a Igreja’” (assim mesmo, como se só houvesse uma). Estou esbodegada com tanta palermice, mesmo se não me falta hábito -- nenhum ateu que se afirma ateu e que critica as religiões, nomeadamente a religião/seita dominante no território onde vive (em não correndo o risco de ser lapidado, claro) se furta a ouvir, dia sim dia sim, que “tem qualquer coisa contra ‘a Igreja’ (assim, com maiúscula e sem identificação, como se só houvesse uma)”, insinuando-se nessa “qualquer coisa” um motivo “pessoal” qualquer, inconfessável, mesquinho e sobretudo irracional, para “odiar a religião”. A coisa culmina numas bocas tipo “deve ter algum trauma”.

 

Portanto eu quando digo, por exemplo, que acho que os crucifixos devem ser retirados das escolas públicas porque estarem lá significa imprimir um carácter religioso, proselitista, ao ensino público que é por definição constitucional laico, faço-o porque tenho um trauma. Não é por uma questão de princípio, não é por saber que os crucifixos foram mandados colocar nas escolas por Salazar para sinalizar uma religião oficial; é trauma, e dos bons, e ódio, e do virulento. O mesmo se aplica, claro, quando escrevo a propósito das infamantes declarações do cardeal Saraiva Martins, que acha normal que bispos tenham encoberto e silenciado casos de abuso, porque, e cito, “é assim nas famílias, não se lava roupa suja em público”. Não fosse eu uma traumatizada odienta e isto parecer-me-ia desculpável, admirável quiçá.

 

Isto assente, e sem perder latim a comentar o óbvio -- não é a melhor altura do mundo para alegar traumas primordiais como causa de qualquer visão crítica relacionada com “a Igreja Católica”, mas os seus “defensores” lá hão-de saber o que fazem --, perscrutemos a coisa. Sendo uma igreja o conjunto dos crentes, dizer que alguém lhes tem um trauma associado é uma coisa um pouco ridícula, pelo que, suspeito, a imputação se relaciona com padres. Vejamos, então, a minha relação com sacerdotes e quejandos. A primeira vez que me lembro de estar numa missa deveria ter uns três anos. Lembro-me do cheiro (velas), de ficar fascinada com a água benta (queria provar para ver a que sabia), com os gestos e o facto de as pessoas saberem quando repetir coisas em coro e quando ajoelhar e desajoelhar e de estar com a minha avó materna e de ela me dizer para eu estar calada e eu ter dito qualquer coisa alto a um primo – apre, as igrejas ressoam, parecia que a minha voz não se ia embora -- e o senhor de vestido comprido que estava a falar muito compassadamente e trocando os vês pelos bês ter-se calado a olhar para mim gelando-me de medo e vergonha. Também me lembro de querer comer aquela coisa que as pessoas comiam em fila e não me deixarem e o meu primo mais velho ir e dizer que era bom. Lembro-me também de toda a gente ir à catequese e eu não ir (e ter pena) e de haver meninas e meninos a fazer a primeira comunhão com roupas todas cocós e fotos e eu nada (e ter pena). Depois disso, com padres, só me lembro de um que foi à escola primária uma vez (não me lembro do que lá foi fazer) e do que me deu aulas de Religião e Moral, então disciplina obrigatória, no ciclo, conhecido como oposicionista e que eu adorava.

 

Também me lembro de um folheto que o padre fez, era eu mais crescida, a explicar porque é que as pessoas não se deviam beijar na boca. Chamava-se “Luís, por que não hei-de beijar-te”, metia salivas e micróbios e foi a risota geral. Mas nessa altura eu já era ateia. Tinha tido uma conversa com deus em que o tinha informado de que não acreditava nele. Lembro-me de que foi na cama, no escuro, meteu lágrimas e tudo mas a coisa ficou assente. O motivo próximo foi uma conversa com o meu avô paterno, que depois de velho tinha dado em devoto e costumava ler-me a bíblia e ensinar-me a rezar e que um dia me disse que até aos 10 anos as crianças não pecavam, mas depois passavam a pecar. A ideia com que fiquei foi de que até aos 10 anos eu pertencia a deus e a partir daí tinha de decidir se queria continuar a pertencer. Decidi que não. E pronto. Foi horrível, não foi?

 

(publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 18 de abril)

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