O voto na ciência
Não concordo mesmo nada com esta classificação, que esquece, entre outras, a iniciativa «Em Defesa da Ciência» de que o Carlos nos deu conta em meados de Setembro e de que volto a reproduzir os primeiros parágrafos publicados no NYTimes:
Hoje, nos Estados Unidos, a ciência, como ciência, está sob um ataque como nunca foi visto.
Os sinais estão por todo o lado. Os ataques chegam a um ritmo acelerado, e incluem frequentes intervenções por forças poderosas, dentro e fora da administração Bush, que parecem muito dispostas a negar todas as verdades científicas, perturbar investigações científicas, bloquear o progresso científico, minar a educação científica, e sacrificar a própria integridade do processo científico - todas procurando concretizar a sua agenda política particular. E hoje esta agenda política dominante está profundamente aliada e entrelaçada com uma agenda ideológica extremista (e extremamente anti-científica) apresentada por poderosas forças religiosas fundamentalistas vulgarmente conhecidas por direita religiosa.
Ou seja, estas iniciativas não pretendem «vender» a escolha política dos prémios Nobel como tendo um valor acrescido, destinam-se a explicar ao público em geral a posição quasi unânime da comunidade científica norte-americana em relação a estas eleições, bem expressa no gráfico que ilustra o post, resultante de uma votação levada a cabo pela The Scientist e analisada no artigo «Scientists pick their President».
De facto, a crise económica, a segurança nacional e a política externa, especialmente a primeira, têm dominado a agenda mediática das campanhas presidenciais. A ciência aparece como uma «parente» pobre do debate político, apenas vísivel indirectamente quando o tema é a crise energética ou as alterações climáticas.
No entanto, a importância da ciência mesmo no tópico que domina as preocupações actuais, não só nos Estados Unidos mas em todo o Globo, é visível se considerarmos que desde a segunda guerra mundial a ciência e a tecnologia foram responsáveis por metade do crescimento económico dos Estados Unidos. Isto é, a saída da crise passa também pela política de ciência do presidente a ser eleito. E para além de palavras que podem ser bonitas mas inconsequentes, importa assim analisar o que será esta política para ambos os candidatos. Na mesma Scientist, eram debatidos há uns tempos os conselheiros científicos de Obama e McCain. Como indicou Thomas Murray, presidente do Hastings Center, um think tank de bioética:
«Neither of the candidates is a scientist to start with. We can presume that they're going to rely on experts in science and science policy. It is important to know who their advisors are.»
Em relação a Obama, Martin Apple, presidente do Council of Science Society Presidents, uma confederação de sociedades de ciência envolvendo mais de um milhão de cientistas e professores, estava certo de que ele iria conseguir expandir o excelente grupo de conselheiros que já reunira de forma a cobrir todas as áreas de ciência.
No entanto, como a Scientist indicou em finais de Setembro, o ticket republicano não considerou necessários quaisquer conselheiros de ciência, pelo que se pode apenas presumir que os dois candidatos fazem tenção de levar para a Casa Branca as suas «maverick ideas» sobre ciência no caso cada vez mais improvável de serem eleitos.
As ideias de um ticket que se considera auto-suficiente em ciência foram «chumbadas» pela comunidade científica norte-americana que veio a público explicar as razões do chumbo e não tentar usar um mau argumento de autoridade.
A ciência norte-americana sobreviveu com alguma dificuldade a oito anos de administração Bush que desbaratou milhões de dólares em investigação pseudo-cientifica e comprometeu a ciência americana enchendo os organismos públicos de fanáticos religiosos, o caso mais notório sendo a Food and Drug Administration. Se McCain for eleito, não só dará continuidade à política de ciência de Bush como a poderá agravar se um Supremo de maioria teocrata resolver intervir em ciência «blasfema», como investigação em células estaminais, sexualidade, contracepção e afins. Ou seja, para além de continuarem os cortes do financiamento federal para projectos considerados imorais pela The Traditional Values Coalition (TVC), podem mesmo acabar essas áreas de investigação. Na hipótese remota de que não seja necessário substituir juizes do Supremo nos próximos 4 anos, a maioria dos cientistas norte-americanos teme as consequências de mais 4 anos de política anti-ciência e pró iniciativas da fé (que inclui o desvio de financiamento do NIH para palermices como curas pela fé e afins).
Por outro lado, há outras áreas como o ensino da ciência que causam preocupação. A eleição de Obama seria uma contribuição muito importante para encerrar a questão do ensino do criacionismo enquanto o voto em McCain/Palin dará alento às guerras «culturais» dos fundamentalistas evangélicos norte-americanos.
Também em termos das respostas à crise energética o ticket republicano causa muitas dúvidas. No Congresso norte-americano, o senator McCain faltou à votação das 8 propostas que pretendiam incentivar a produção de energias eólica e solar mas deu o seu apoio não só à diminuição da taxa fiscal sobre a gasolina como também a uma intensificação da exploração petrolífera. Na convenção republicana, os gritos dos delegados de "drill, baby, drill" que interromperam os discursos de Palin e McCain mostraram que os delegados presentes apoiam entusiasticamente as posições de ambos.
Sarah Palin, que considera não haver contribuição humana para as alterações climáticas, também já indicou claramente que a sua resposta à crise energética consiste em aumentar a produção de petróleo. No dia 2 de Julho de 2008, Sarah Palin juntou a sua à voz do senador Ted Stevens explicando porque se deve perfurar a Arctic National Wildlife Refuge, a que Palin se refere como «aquele pequeno pedaço de 2,000 acres».
Um dos problemas globais mais importantes é exactamente a promoção de inovação e investigação em torno de energias limpas e do aumento da eficiência energética mas esse problema tem sido até agora ignorado pelos candidatos republicanos em prol do aumento da exploração petrolífera, inclusive em reservas naturais.
Aliás, os ambientalistas apelidam Palin "killa from Wasilla" e a explicação desta alcunha explica ainda o que foi a política ambiental e a posição face à ciência de Palin enquanto governadora do Alasca:
«Her philosophy from our perspective is cut, kill, dig and drill," said John Toppenberg, director of the Alaska Wildlife Alliance, maintaining she is "in the Stone Age of wildlife management and is very opposed to utilizing accepted science.»
Em suma, a eleição de uma candidata que questiona os princípios básicos da ciência, que não não aceita as recomendações de cientistas se estes não tiverem ligações ao «Big Oil» e que considera que as suas crenças religiosas devem ser ensinadas como ciência terá certamente repercussões muito negativas na política científica norte-americana e é apenas natural que os cientistas demonstrem enfaticamente quem apoiam nestas eleições.
Outra questão que interessa considerar tem a ver com as consequências para o resto do mundo destas eleições e estou a pensar apenas nas consequências a nível científico. Se pensarmos em termos de ciência, poder-se-ia pensar que o afundamento da ciência norte-americana será benéfico para a Europa, que forma mais cientistas e engenheiros que os Estados Unidos mas não consegue retê-los: boa parte da «mão-de-obra» científica nos Estados Unidos vem de fora, em muitas áreas principalmente da Europa. Um ambiente «hostil» em algumas áreas, como seja a investigação em células estaminais a que Palin se opõe e Bush vetou, aliado a políticas de financiamento federal de investigação científica na linha das actuais poderão tornar este país menos aliciante para cientistas europeus.
Um desinvestimento federal em ciência nos Estados Unidos poderá assim beneficiar a Europa e colocar-nos na liderança em termos científicos e também tecnológicos, isto é, será uma ajuda preciosa em termos do desenvolvimento europeu de uma economia do conhecimento. Por exemplo, as tecnologias em energias renováveis, em que aposta muito fortemente a Alemanha, serão as próximas indústrias globais, ultrapassando muito provavelmente as tecnologias da informação daqui a uns anos. Os países que mais investirem agora em investigação nesta área beneficiarão assim de uma vantagem estratégica no futuro próximo.
No entanto, também nesta área, um abrandamento da investigação nos Estados Unidos afectar-nos-à a todos uma vez que atrasará certamente o desenvolvimento de formas alternativas de energia de que o planeta precisa urgentemente.
(em stereo no De Rerum Natura)