Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

jugular

Da cobardia e da coragem

Começa, desde logo, pela escravatura da gramática. Pela escolha das palavras. Eis o início da cobardia ou do medo de se dizer o que se é, o que se pensa, por causa daquilo que tem um nome: consequências. Numa pátria de gramática, a cobardia é uma cobra, os cobardes são escravos da língua, encostamo-nos para trás ao fim de um dia de opiniões e o ar está poluído de silêncios, isto é, do ruído enorme das palavras subsidiárias, as que acautelam as malditas consequências, as que asseguram que não se criam inimigos, as que não afunilam oportunidades futuras de convívios, desde logo profissionais. Eis então o silêncio desse ruído, todos os dias.

Nos murmúrios das mesas de café, dezenas de afirmações categóricas, dedos em riste, tanta gente afirmativa, tanta gente de peito aberto às balas, mas, depois, as faces desses murmúrios dão a sua fotografia aos textos que as desmentem, às intervenções que as integram no sistema dos bons costumes, faces sorridentes em apertos de mãos aos inimigos dos murmúrios das vésperas secretas, tudo assegurado, os amigos oportunos, os convívios para o que possa ser, os empregos de amanhã.

Há quem não tenha medo de uma máquina que não perdoa essa falta de medo passem os anos que passarem. Em bom rigor, há quem viva, mesmo, sem uma película de plástico transparente, porque genuinamente pensa, diz, escreve e fala sem a percepção de um sistema que regista, que pune, que cobra e que demite.

Os loucos, livres, ingénuos, na verdade, corajosos na vida pública porque o são numa mesa de café como o são na defesa de um amigo que leva uma facada numa esquina, são gente pouco atenta à manipulação dos cobardes com vestes de gente brava. São como as crianças recrutadas para os exércitos. Motivam-nos para darem a cara, para escreverem, para dizerem, para gritarem, aplaudem-nos em telefonemas privados, dão sugestões, dizem do que diriam no seu lugar, mas reservam esse lugar para os tais loucos, loucos de tão livres, que se esquecem, ou não sabem sequer pensar sobre isso, que cada palavra tem um preço, que cada intervenção assertiva cria um inimigo, que cada luta desinteressada interessa a alguém e é sempre olhada como interessada por tantos outros.

Os loucos de tão loucos pela liberdade caracterizam-se pela generosidade. Não sabem dizer não a qualquer pedido no qual vejam justiça. Emagrecem até ao limiar dos ossos pelos outros, se for necessário, e um dia, às vezes, acordam no espantoso acontecimento de um pedido deles não ser atendido pelo camarada, descobrem com a mesma perplexidade de um navegador que a bitola ética do outro não é a sua, verificam que há vinte portas fechadas por causa de uma denúncia justa, ligam para quarenta caixas de mensagens, encontram, enfim, um outro silêncio, o seu preço, e esse dá pelo nome de solidão.

É aí, nesse lugar, nesse lugar que é uma doença, a doença que predomina todas as doenças, a solidão, que o louco pela liberdade faz uma escolha: descobre o polvo que o rodeia e avança com os passos de sempre ou adere à poluição dos silêncios e junta-se em mesas de cafés, com a sua acutilância, de dedo em riste, denunciando as injustiças, as corrupções, as mentiras, murmurando-as, portanto, mas escorrendo-as no dia seguinte subordinado à gramática do compromisso, a ver se assegura portas abertas, chamadas atendidas, convívios sociais, amigos que dão jeito, trabalhos futuros.

Quando, nesse lugar, nesse lugar doloroso, mas de amadurecimento, o louco pela liberdade, o anterior ingénuo que tinha por normal não sofrer por carregar apenas a sua consciência, escolhe subordinar a gramática e não se subordinar a ela, escolhe riscar a palavra consequências do seu dicionário de convicções, temos um corajoso.

Em seu redor, um degelo. Ficarão poucos; os que contam. Mas, recordando Shakespeare, ele experimentará a morte apenas uma vez na vida. Já os cobardes, esses morrem várias vezes antes da sua morte.

 

16 comentários

Comentar post

Pág. 1/2

Arquivo

Isabel Moreira

Ana Vidigal
Irene Pimentel
Miguel Vale de Almeida

Rogério da Costa Pereira

Rui Herbon


Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Comentários recentes

  • f.

    olá. pode usar o endereço fernandacanciodn@gmail.c...

  • Anónimo

    Cara Fernanda Câncio, boa tarde.Poderia ter a gent...

  • Fazem me rir

    So em Portugal para condenarem um artista por uma ...

  • Anónimo

    Gostava que parasses de ter opinião pública porque...

  • Anónimo

    Inadmissível a mensagem do vídeo. Retrocedeu na hi...

Arquivo

  1. 2019
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2018
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2017
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2016
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2015
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2014
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2013
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2012
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2011
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2010
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2009
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2008
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2007
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D

Links

blogs

media