Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

jugular

a religião do reino

Este ano celebram-se 100 anos sobre a implantação da República em Portugal. Para além do óbvio – a substituição de um regime monárquico, de chefe de Estado hereditário, por um de cariz eleitoral, ainda que de sufrágio não universal (esse só viria muitos mas muitos anos depois, com o 25 de Abril), a República é também o momento de outra alteração fundamental: a separação entre Estado e religião, operada por meio da lei do mesmo nome, de 1911, atribuída ao ministro da Justiça Afonso Costa e da qual se fala quase sempre como uma brutalidade infligida ao país e a principal causa do malogro da 1ª República.

 

É um documento no qual o bom senso, justiça e progresso – a declaração da liberdade de culto, por exemplo – se cruzam com medidas duras e aparentemente gratuitas como a da proibição de símbolos religiosos no exterior de qualquer edifício, mesmo privado, que não reservado ao culto, e do uso de vestes talares pelos sacerdotes no espaço público. E há a questão económica: a expropriação de todas as propriedades da Igreja Católica para o Estado, considerada um esbulho intolerável e ainda hoje invocada para justificar benesses estatais concedidas à mesma, apesar de na mesma lei se determinar que se a propriedade passava a pertencer ao Estado o uso permanecia avocado ao culto, seminários, escolas, etc, e se esquecer que atendendo ao anterior estatuto estatal da religião, aqueles bens eram em grande parte produto desse estatuto.

 

Mas se não há porque negar que a lei de separação é dura e em alguns aspectos exagerada, o que sistematicamente se cala, em termos de violência, trauma e excesso, são as leis prévias à República e, nomeadamente, aquelas à luz das quais a reacção republicana se lê melhor. Só a título de exemplo, o Código Penal de 1886, portanto 25 anos antes, e cujo primeiro grupo de crimes – portanto os mais graves – se intitulava “Dos crimes contra a religião do reino e dos cometidos por abusos de funções religiosas”. Aí se incluía não só a blasfémia contra a religião católica como a propagação por qualquer meio de doutrinas “contrárias aos dogmas católicos definidos pela igreja”, a tentativa de conversão para outra religião e até a celebração de actos públicos de qualquer outro culto, todos com pena de “prisão correccional desde um até dois anos” e de multa “de três meses a três anos”. Da lista constava ainda a injúria e ofensa cometidas “contra ministro da religião do reino no exercício ou por ocasião do exercício das suas funções”, a punir “com as penas que são decretadas para os mesmos crimes cometidos contra as autoridades públicas”.

Nem a apostasia escapava: “Todo o português que, professando a religião do reino, faltar ao respeito à mesma religião, apostatando, ou renunciando a ela publicamente, será condenado na pena fixa de suspensão  dos direitos políticos por vinte anos.” Por outras palavras, se necessário traduzir: era-se como português obrigado, sob ameaça, a ser católico. Mais: para cumprir cargos públicos, para testemunhar e até para matrícula em “estabelecimentos de instrução” era necessário proceder a juramento religioso (sobre a Bíblia), obrigatoriedade legal que foi uma das primeiras normas a ser abolidas pela República, em decreto de 18 de Outubro de 1910, no qual se especifica qual deverá ser doravante o termo do juramento (aquele que ainda hoje está em vigor – sob palavra de honra).

 

Palavra de honra, pois: cotejada com a virulência proselitista do Código Penal de 1886 e com as leis de imposição de fé da monarquia, a Lei de Separação parece tudo menos a peça de ódio e ateísmo descabelado que integra a propaganda “anti-jacobina” e contra República. É boa altura de parar com o disparate.

(publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 6 de junho)

30 comentários

Comentar post

Arquivo

Isabel Moreira

Ana Vidigal
Irene Pimentel
Miguel Vale de Almeida

Rogério da Costa Pereira

Rui Herbon


Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Comentários recentes

  • f.

    olá. pode usar o endereço fernandacanciodn@gmail.c...

  • Anónimo

    Cara Fernanda Câncio, boa tarde.Poderia ter a gent...

  • Fazem me rir

    So em Portugal para condenarem um artista por uma ...

  • Anónimo

    Gostava que parasses de ter opinião pública porque...

  • Anónimo

    Inadmissível a mensagem do vídeo. Retrocedeu na hi...

Arquivo

  1. 2019
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2018
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2017
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2016
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2015
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2014
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2013
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2012
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2011
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2010
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2009
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2008
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2007
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D

Links

blogs

media