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Quem detém o poder?

A seguinte pergunta, formulada pelo Paulo Querido, e a minha resposta, que reproduzo na sequência, foram originariamente publicadas em Uma Pergunta por Dia:

Escreveu que a crise financeira levou à transferência de grande parte do endividamento do setor privado para o público, porque os Estados decidiram, na emergência, assegurar a solvência do sistema. Há a ideia de reformar o funcionamento do sistema financeiro com o reforço dos instrumentos públicos europeus sobre, entre outras, as agências de rating. Mas há também muitas resistências e a verdade é que a crise enfraqueceu mais os governos do que os bancos e instituições financeiras, cujo poder parece ter aumentado. A pergunta é: até que ponto ficámos mais próximo da substituição dos Estados-nação pelos Estados-multinacionais, supondo que este cenário não existe só na mente dos autores de ficção científica?

Um dos problemas centrais da nossa época é a contradição entre a crescente globalização da economia e o persistente paroquialismo dos poderes públicos. Isto implica a subalternização dos poderes políticos em relação aos poderes fácticos e, logo, a despromoção da democracia a um jogo formal sem conteúdo.

Onde está, então, na actualidade, o poder económico-financeiro? Quer a Europa quer os EUA dispõem de escassa margem de manobra; mas a situação dos EUA é pior, dado que o desequilíbrio financeiro europeu é interno (Alemanha vs. restantes países da UE), ao passo que o americano é externo (China vs. EUA).

A ausência de instituições democráticas federais e de um normal jogo democrático à escala continental torna a UE prisioneira do absurdo provincianismo da RFA, uma grande potência com miolos de galinha no que toca à política internacional.

Quanto aos americanos, hesitam em tomar medidas proteccionistas contra as importações provenientes da China, na medida em que ao fazê-lo correriam o risco secar a principal fonte externa de capitais que lhes permite suprir a insuficiência da poupança interna.

Aparentemente, o único país que dispõe das condições necessárias para ajudar o mundo a sair da crise é, pois, a China, o que implicaria que aceitasse a progressiva valorização da sua moeda e reorientasse o seu crescimento para o mercado interno em detrimento das exportações.

Até ao momento, porém, ela parece relutante em assumir esse papel: em coerência com a sua tradição milenar, o resto do mundo interessa-lhe apenas na medida em que o abastece em matérias-primas essenciais de que carece e lhe assegura mercados em expansão para as suas mercadorias, sem parecer entender que parceiros comerciais empobrecidos deixarão a breve trecho de poder comprar-lhas.

A conclusão é que os poucos estados ou associações de estados suficientemente poderosos para exercerem uma influência positiva ou não podem ou não querem enfrentar as disfunções globais do sistema económico-financeiro.

Tampouco as escassas e frágeis instituições de cooperação internacional existentes, de que se destaca o FMI, têm condições para fazê-lo.

De modo que nos encontramos hoje apanhados entre o fogo cruzado de duas forças perversas momentânea e paradoxalmente convergentes: de um lado, os mercados financeiros globalizados desregulados; do outro, os retrógrados nacionalismos que pressionam cada estado a buscar a sua salvação à custa dos outros.

Esta aliança será, porém, efémera, porque os instintos e os valores dos especuladores internacionais são incompatíveis com os dos populismos de inspiração chauvinista que, presentemente, ressurgem ou tomam mesmo o poder um pouco por toda a parte.

Em última instância, a resposta à pergunta: quem detém o poder? depende do que formos capazes de fazer com esta crise, tendo em conta que situações instáveis como a actual são aquelas em que existe uma maior abertura a novas possibilidades, ou seja, uma mais ampla margem de indeterminação e, logo, de escolha entre opções alternativas – na condição, porém, de que elas sejam formuladas de forma consistente e propostas com clareza aos cidadãos.

No caso da Europa, é urgente desfazermos o mito de que na UE não deve haver um confronto entre direita e esquerda, mas apenas uma negociação de bastidores entre estados-nações representados pelos respectivos governos. A UE não pode ser encarada como um tema de política externa pelos seus estados membros, mas como o único terreno em que pode ter lugar uma saudável luta política democrática assente no livre confronto entre concepções opostas.

Lisboa, 14 de Junho de 2010

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