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novembro

Nunca sei se se deve escrever sobre mortos. Não tenho uma regra. Já escrevi e já não escrevi. Quando alguém morre, ou quando se aproxima o aniversário de uma morte, quem escreve sente o quase inelutável impulso de escrever “qualquer coisa”. Parece quase uma obrigação, um imperativo: tu que escreves tens que encontrar o que dizer. Tu, que escreves, tens de fazer sentido, texto, poema, oração, disto. “Dizer umas palavras”. É assim que se diz.

Em Portugal, não há muito o hábito de dizer palavras sobre os mortos, para os mortos, no momento deles. Há pessoas para isso, pessoas que muitas vezes nem os conheciam e falam de alegorias e metáforas e salvações e vidas eternas. Mas pergunto-me sempre porque nos resignamos a esse hábito, porque não temos a coragem de fazermos nós, os que perdemos os mortos, os que os amámos, o discurso fúnebre. Falar sobre mortos é falar sobre a morte. E falar sobre a morte dos outros é enfrentar a nossa própria morte, mesmo que de viés, de raspão. Não se sai sempre bem. Não nos saímos sempre bem desse confronto – aliás, dir-se-á que nos saímos sempre mal por uma muito simples razão: não há saída. Por essa e por outras razões, muitas vezes não gosto do que leio, escrito por outros, sobre mortos. Os mortos não estão. Não estão para ouvir, não estão para ler, para gostar ou não gostar. Não estão para dizer: vai passear. Não estão para dizer: tu, de quem eu nem sequer gostava, tu, que eu desprezava, tu, com quem eu não falava há anos, tu, que me traíste, agora queres falar de mim? Queres redimir-te dos teus pecados e dos teus maus sentimentos? Queres usar-me para tricotar grandiloquências e lamechices em jeito de reconciliação póstuma? Queres chorar a tua juventude perdida comigo como pretexto, esconjurar os teus terrores em mim, mostrar ao mundo que és uma pessoa de grandes sentimentos e grandes mágoas, romantizar-te numa suposta grande perda? Disponíveis para todas as efabulações e relatos, todos os elogios e panegíricos, todas as lágrimas fáceis, os mortos são o mais árduo dos temas. Difícil falar deles com dignidade. Ser justo com eles e com a nossa memória deles. Ser capaz de rodear os interditos e os aproveitamentos. Não se diz mal dos mortos, repete-se. Como se algo de terrível sucedesse se fossemos apanhados a dizer, ou mesmo a pensar, algo menos fabuloso. Mas os mortos não são heróis – são mortos. Estar morto não é uma condecoração, uma entronização. A morte é. Afirma-se, inintegrável, irredimível, sem justificações. “Morte estúpida”, lê-se tantas vezes. Há mortes inteligentes? “Morte inesperada” – está bem, se calhar há mortes esperadas, se calhar há até mortes desejadas, até pelas melhores razões. Mas, por mais que a anunciemos, a morte deixa de ser uma surpresa? Dizem-nos: X morreu. Vamos ao velório, ao enterro, abraçamos amigos e família, choramos. Mas não cremos. É uma coisa demasiado esotérica, a morte: uma pessoa que existe deixar de existir, como? Pensamos nela como alguém que há. Guardamos-lhe o nome, o tom de voz, a forma como fazia saltar a franja, como segurava os cigarros. Coisas que nem sabíamos que sabíamos. Sentimentos que nem sabíamos que sentíamos. Se não virmos os mortos, se não lhes tocarmos, se olharmos para outro lado quando alguém lhes levanta o sudário, podemos fazer de conta que foram para outro país, outra cidade. Que nunca voltaram da Patagónia. Podemos escrever textos bonitinhos sobre eles e derramar lágrimas bonitinhas por eles e viver como se eles não se tivessem volatilizado. Podemos comemorá-los em datas certas. Podemos até, talvez, fazer piadas com eles, contar as suas anedotas. E esquecê-los, pouco a pouco. Porque é isso a memória: esquecer aquilo que não nos permite continuar. Viver. (publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 25 de novembro)

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