Saramago morreu – a minha vida sem pardais
Não é à pessoa.
Escrever é ir além do que se é; só quem o conhece pode destrinçar o ser que acorda e dorme. Não é o meu caso. Nunca vi Saramago e nunca ansiei por isso. Saramago era para mim um livro que se lê. Tão-só. E tão só o fiz quando o fiz. Cresci – de crescer (os anos não são para aqui chamados) – a lê-lo, ao Saramago-livro. Li o Memorial como quem vive uma vida. Saí dele diferente, como quem – por causa – se decide numa encruzilhada. Ele há disto? Que coisa é esta que me deforma & forma desta maneira intrusiva? Na altura, a anos-luz deste presente circunstancial, senti Saramago um escultor, moldando sentires na pedra bruta do meu ser. As palavras do Memorial têm cheiro e sabor e olhos. Ouvem e palpam. Lá estão e cá hão-de ficar para sempre, como parte de mim e de quem de mim veio e há-de vir.
Todos os Nomes. Ainda hoje aquele sou eu. Saramago tem o dom de nos transformar e de nos transformar também. De nos transformar porque não saímos diferentes da discussão, e de nos transformar também porque nos obriga ao protagonismo. Ordena-nos, como que sob ameaça, o papel principal. E lá andei (e ando) entre registos de nascimento e de morte. À procura.
Ensaio sobre a Cegueira. Ceguei primeiro (naquele semáforo) e fui o fingidor depois; Homem Duplicado, procurei; O Ano da Morte de Ricardo Reis, entrei vezes sem conta naquele quarto de hotel.
Não se traduz este sentir em palavras (tento): a minha angústia de hoje, a minha dor, resume-se (?) ao facto de não mais haver mais daquilo (disto), como que a extinção de uma espécie. Acabou-se o chilreio obrigatório e maçador e divertido e saltitante e definitivo (imaginem a vossa vida sem pardais). Da certeza da certeza (da minha) de que para o ano não sairá mais um – ainda que eu o venha a detestar (como aconteceu com Caim).
Caim. Com Caim, que eu (ainda abaixo da esperança média de vida, o que me retira autoridade) julguei escusado, senti (assim que o li) que Saramago dizia algo como "estou quase aí e continuo a não acreditar em ti, essa luz que até já vi [quatro pontos em forma dele, disse ele em entrevista] não pode ser, que eu sei que estou deitado naquela cama e que dali me levam metade para aqui e a outra metade para acolá. Às cinzas."
Assim o quero. Quem manda aqui sou eu. Assim como fiz Blimunda e Baltasar, Jesus a amar Madalena, ceguei o primeiro que cegou. Assim vos dou, eufemismo de marco-vos a ferros. Como vosso pai.
Com Saramago, o homem, foram-se hoje as esperanças de mais intrusões destas. A partir d’agora tenho a certeza de que as páginas não me comandam.
Foi só isto que se perdeu hoje. Este.
Doravante, ler será infinitamente mais cómodo. E aborrecido.
Uma última palavra (e detesto terminar assim) para os que crucificam Saramago ou o enforcam numa figueira, conforme o queiram cristo ou judas: o Saramago que ontem morreu, o dos livros, não tem direita ou esquerda. Foi sempre em frente. Leiam e odeiem ou amem. Ou então calem-se, que daqui não levam votos nem pedidos de mais hóstias ao padeiro.
(também aqui)