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O eclipse do átomo (dedicado ao Paulo)

Foi lançada em Trancoso há três anos a primeira pedra do Centro de Interpretação da Cultura Judaica Isaac Cardoso. O projecto de Gonçalo Byrne é dedicado ao médico e filósofo que mereceu de Marcelino Menéndez y Pelayo no capítulo II da sua famosa obra «Historia de los heterodoxos españoles»:

«Se excluirmos Bento Espinosa, não há no século XVII judeu de maior conhecimento nem homem de saber mais profundo e alargado que Isaac Cardoso. O seu nome figura lado a lado com os de Gómez Pereyra e Francisco Vallés entre os reformadores da filosofia natural em Espanha».

De facto, o racionalista, por nascimento português (Celorico da Beira, 1615), não agraciou muito tempo solo nacional com a sua presença. Depois de estudar em Salamanca, onde se doutorou em Filosofia e Medicina, ascendeu ao cargo de médico-mor da Corte de Madrid. Como Yosef Hayim Yerushalmi indica no livro «From Spanish Court to Italian Ghetto: Isaac Cardoso», marrano por imposição da coroa portuguesa, sentiu o apelo da religião dos seus antepassados e refugiou-se primeiro em Veneza, a República Sereníssima e livre, e depois em Verona onde professou abertamente o judaísmo.


No frontispício da sua obra mais conhecida, a filosofia tão livre quanto ele considerava a república de Veneza, a cujos governantes dedica o livro Philosophia Libera (1673), encontramos as alegorias da filosofia e da liberdade, sendo a primeira para Cardoso a racionalidade e a segunda condição necessária ao exercício da razão. Quando não há liberdade, para Cardoso, as ciências são servas de seitas (scientias è servitutis iugo liberandas viam operit, ut assensum non Secta, sed ratio promouet), que estrangulam a razão e impedem a inquirição da verdade.

Embora Cardoso seja prudente na condenação do jugo de servidão imposto pelas seitas ao conhecimento e à razão, que refere ter sido útil no passado, a sua obra tem um cariz não só abertamente anti-aristotélico como especialmente anti-escolástico. Os escolásticos, nas palavras do insuspeito José Sebastião da Silva Dias, «Continuaram a subordinar a filosofia à teologia, a razão à autoridade, a criação ao comentário, quando as ciências particulares lutavam pela sua independência e os homens cultos procuravam bases puramente racionais para a filosofia».

Isaac Cardoso foi igualmente um dos primeiros atomistas explícitos e assumidos após o eclipse do átomo - e o único português desta época que conheço a fazer a apologia do atomismo -, nomeadamente no capítulo «Principiis Rerum Naturalium» onde Cardoso afirma que a existência de átomos é quasi imposta pela razão, Sunt Atomi rerum principia.

De facto, a Idade Média é uma época de eclipse do átomo, e para a continuação da história do atomismo* foi fundamental a redescoberta da versão integral do poema De Rerum Natura de Lucrécio, o que aconteceu, segundo alguns historiadores, em 1417 por Poggio Bracciolini. Alistair Crombie conta-nos no segundo volume do seu livro «Medieval and Early Modern Science» que:

«Certamente as ideias de Lucrécio não eram desconhecidas antes desta data: elas aparecem, por exemplo, nos escritos de Hrabanus Maurus, William de Conches, e Nicholas de Autrecourt. Todavia, o poema de Lucrécio parece ter sido conhecido apenas parcialmente, em citações nos livros dos gramáticos. Ele foi impresso mais tarde no final do século XV e depois disto reimpresso muitas vezes».

O referido Nicholas de Autrecourt protagonizou a primeira (e única durante uns séculos) tentativa de recuperação do atomismo. Como é reconhecido pela Stanford Encyclopedia of Philosophy, Autrecourt figura em praticamente todas as histórias da filosofia medieval pelo facto de ter sido censurado e condenado pela Igreja, evento considerado um dos mais relevantes em Paris no século XIV.

A filosofia natural de Autrecourt mantinha que a matéria, constituida por átomos, é eterna e não se corrompe e que as mudanças no mundo natural se devem ao movimento dos átomos. Embora Autrecourt assegurasse quem o lia ou ouvia de que falava apenas como um filósofo natural e que não pretendia contradizer a fé católica, tal não foi a leitura do papa e demais eclesiásticos que o julgaram e condenaram em 1346. Os ensinamentos de Autrecourt foram declarados falsos, perigosos, presunçosos e heréticos, a sua obra foi queimada e o filósofo foi obrigado a retractatação pública.

A condenação pela Igreja do atomismo como uma heresia materialista e anti-cristã explica o eclipse do átomo durante a Idade Média. George Depue, autor de «Lucretius and his Influence», refere no livro que o atomismo foi especialmente repudiado pela Igreja Católica por negar a doutrina da transubstanciação. Isto é, um filósofo cristão que advogasse o atomismo ( ou o nominalismo) estaria a atacar as próprias fundações da fé católica. A condenação do atomismo pela Igreja de Roma agudizou-se após a Reforma protestante já que os protestantes defendiam a consubstanciação e negavam a transubstanciação, isto é, «O pão e o Corpo de Cristo estão realmente, mas não substancialmente nem essencialmente presentes» na eucaristia.

Para reafirmar as doutrinas católicas tradicionais e fazer frente à reforma protestante que se tinha espalhado por todos os países da Europa Ocidental e da Europa Setentrional, com vários reformadores a reinterpretar o cristianismo para além de Lutero, como Ulrico Zuínglio, Guilherme Farel, Filipe Melanchton, João Calvino ou João Knox, foi convocado o Concílio de Trento em Dezembro de 1545. A última sessão do Concílio decorreu no dia 4 de Dezembro de 1563, dia em que foram lidas as decisões tridentinas, formalmente aprovadas pelo Papa Pio IV em 26 de Janeiro de 1564. As decisões tridentinas marcaram a ascendência de Tomás de Aquino, isto é, Aristóteles, no catolicismo e a doutrina católica foi definida não apenas do ponto de vista teológico, mas claramente no domínio científico.

Nomeadamente, ao reafirmar a doutrina da transubstanciação, a Igreja condenou o atomismo que afirmava serem os átomos ou mínima a substância de um objecto e as percepções sensíveis produto dessas partículas. Se durante a eucaristia as percepções sensíveis do pão e do vinho não se alteram após a consagração então não ocorre transubstanciação e esta consequência do atomismo aproximava-se perigosamente das teses de Lutero e dos protestantes. Isto é, «cor», «odor» e «sabor» eram palavras do domínio teológico, designavam antes de mais o milagre eucarístico, e qualquer tentativa de explicação natural destas propriedades constituía uma heresia a ser combatida.

Aliás, Descartes apercebeu-se dessa implicação do seu Traité de la Lumière (Tratado da Luz) e impediu a sua publicação, embora numa carta ao seu amigo padre Mersenne, datada de 25 de Novembro de 1630, tenha referido que, como em quase toda a sua obra, tentava conciliar religião católica e ciência: «querendo aí explicar as cores, em consequência fico obrigado a explicar como a brancura do pão permanece no Santo Sacramento».

Não é assim de espantar que no final do século XVI e início do século XVII a teoria atomista se tenha desenvolvido sobretudo no mundo protestante, nomeadamente em Inglaterra com os círculos de Northumberland e Newcastle, não obstante a tentativa de conciliação do atomismo com a doutrina católica protagonizada pelo padre Pierre Gassendi, contemporâneo de Descartes, Blaise Pascal e François de La Mothe Le Vayer.

A condenação católica do atomismo foi renovada durante o século XVII com muita insistência, especialmente pelos jesuítas, que proibiram pela primeira vez o ensino do atomismo, uma «moda» humanista, no dia 1 de Abril de 1623. Em Portugal, essa proibição mantinha-se em pleno século XVIII, como é ilustrado pelo decreto de 1746 do reitor do Colégio das Artes de Coimbra que proibia «quaisquer conclusões opostas ao sistema de Aristóteles» e, em particular, «opiniões novas, pouco recebidas e inúteis para o estudo das Ciências Maiores, como são as de Renato Descartes, Gassendi, Newton e outros».

 

 

*A constituição da matéria e a elaboração de teorias para explicar a natureza do mundo e as nossas relações com ele surgiram na Antiguidade a partir da análise do movimento. O movimento e a mutabilidade da matéria foram questões centrais da filosofia grega. Como conceber a identidade entre a realidade num momento anterior e noutro posterior?

Era necessário que algo permanecesse imutável no processo de transformação. Esse algo foi originalmente concebido através da redução da multiplicidade da natureza a uma unidade fundamental, identificada com uma matéria básica para a formação dos demais materiais, e na qual todos se reduziriam. Esse elemento primordial, o "princípio" (arqué), assumiria a forma de uma substância concreta, tendo sido identificado com a água (Tales 640-546 a.C.), depois o ar (Anaxímenes 560-500 a.C.), o fogo (Heráclito 536-470 a.C.) e a terra (Xenófanes). Empédocles (490-430 a.C.) identificou essas quatro substâncias - água, ar, terra e fogo - como os elementos fundamentais a partir das quais tudo seria formado.

Por volta de 475 a. C, Parménides no seu poema filosófico Sobre a natureza esboçou os rudimentos da teoria que seria exposta daí a poucos anos pelos primeiros atomistas. Parménides afirmou que, não obstante diferentes aparências, tudo é formado do mesmo ser, solitário, nunca criado e eterno, aquele que é «sem princípio e sem fim». Parménides não especula sobre a natureza do «ser eterno», mas fornece dois dados fundamentais que as teorias atomistas retomam: todos os objectos do mundo físico são constituídos por uma substância elusiva e constante, que não é criada e nunca acaba, devendo-se as diferenças entre objectos a diferentes configurações dessa substância.

Ao conciliar a concepção da permanência e da unidade, em aparente contradição com a mudança e a diversidade observadas, fundamenta-se então a unidade da matéria e a sua conservação. Mas até aqui a dualidade foi expressa usando o móvel em oposição ao imóvel. A partir de Demócrito e especialmente de Epicuro esse dualismo passa a ser matéria em oposição a vácuo, com base numa unidade fundamental: os átomos. Estes seriam indivisíveis e em si mesmos imutáveis, embora a alteração das suas posições relativas produzisse uma grande diversidade de fenómenos. Estes átomos difeririam em tamanho e em forma, e apresentariam uma constituição interna sólida e homogénea.

Leucipo de Mileto (?-480 a.C.) e o seu discípulo Demócrito de Abdera (460-340 a.C.) são os pais reconhecidos do atomismo, uma explicação filosófica do mundo físico absolutamente inovadora, que, na linha sugerida por Heráclito, afirma que tudo flui na natureza, mas que, subjacente a esta mutabilidade, há algo eterno e imutável, precisamente o átomo (a = prefixo de privação, tomo = divisão). Nesta explicação do mundo natural o calor, cor e sabor não são em si entidades mas meras consequências dos átomos que as formam. Para avaliarmos a inovação e o arrojo desta visão da natureza, basta pensarmos que o calor foi considerado um fluido até meados do século XIX: o calórico de John Dalton (1766-1844), o pai do atomismo moderno.

Epicuro (341-270 a.C.) reformulou o atomismo de Leucipo e Demócrito e o epicurismo, não muito popular entre os filósofos gregos, nomeadamente Aristóteles e Platão, que adoptaram os quatro elementos fundamentais de Empédocles, teve entre os Romanos os seus principais seguidores, alguns tão influentes como o orador Cícero e o poeta Horácio. Mas, a insistência epicurista em causas materiais para todos os aspectos da natureza era incompatível com a influência crescente do cristianismo de tal modo que, no século V, o epicurismo já era uma filosofia marginal.

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