Imagine que, sendo mulher, deseja laquear as trompas. Ou que, sendo homem, quer fazer uma vasectomia. Lá terá as suas razões, sejam elas quais forem, e dirige-se a um médico competente para a dita operação. Não se surpreenda, no entanto, se este lhe fizer saber que para proceder à cirurgia tem de lhe fazer prova da autorização do seu cônjuge. Acha estranho? Acha inaceitável? Inconstitucional? Ilegítimo? Ridículo? Antiético? Pois este requisito está claramente plasmado no número 3 do artigo 54.º do Código Deontológico dos médicos portugueses: "A esterilização reversível é permitida perante situações que objectivamente a justifiquem, e precedendo sempre o consentimento expresso do esterilizado e do respectivo cônjuge, quando casado."
Todo um programa, este artigo 54º. Num código em que se frisa o dever da confidencialidade e o de "respeitar escrupulosamente as opções religiosas, filosóficas ou ideológicas e os interesses legítimos do doente", determina-se que se exija a um paciente autorização de outra pessoa para tomar uma decisão fundamental sobre a sua saúde e a sua vida. Mais: assume-se que é ao médico, não à pessoa que quer ser esterilizada, que compete ajuizar sobre a justiça das justificações. Mas o mais extraordinário nesta disposição não é ter sido formulada em 1985, quando surgiria já claramente desfasada, não só da conjuntura jurídica como da social; nem sequer o arbitraríssimo poder que confere aos médicos sobre os pacientes e as suas decisões (infelizmente, nada disso espanta); nem tão-pouco o não ter sido até hoje alvo de qualquer reparo ou protesto, quer por clínicos quer por outrem, ou ser única, em todo o código, já que em mais nenhum caso se estabelece a necessidade de incluir outras pessoas na relação entre médico e paciente adulto - note-se que nem no caso de diagnóstico de doença contagiosa e mortal o código permite o quebrar da confidencialidade. Não: o mais extraordinário é que esta disposição tão, digamos, especial é ignorada, por exemplo, pelo presidente do Colégio de Obstetrícia e Ginecologia da Ordem dos Médicos. "Confesso que não sabia que isso lá estava", diz Luís Graça, que certifica ter já feito "centenas de laqueações de trompas". Quando são os próprios médicos a ignorar e desconsiderar o seu próprio código - quer por não o respeitarem na prática e na ética, quer por permitirem que tenha disposições ilegais e inconstitucionais, quer por se recusarem a debater e sanar essa desconformidade -, talvez não faça sentido que se escandalizem se outros lhes exigem, pelos meios ao dispor, que façam o que deve ser feito. É uma intromissão no foro privado da classe? Talvez. Mas até isso, a ser verdade, seria justiça poética.|
(texto de rui tavares) No início do seu livro “O Que Resta da Esquerda”, o autor Nick Cohen conta como em criança não comia laranjas portuguesas por causa de Salazar nem espanholas por causa de Franco. No fim do livro, descreve as centenas de milhares de pessoas que se manifestaram contra a Guerra do Iraque como “apoiantes do fascismo”. É um percurso ideológico longo mas que o leva, entre laranjas e pessoas, da amálgama à amálgama.
Este livro foi editado em Portugal por Zita Seabra. Devem ser incontáveis no nosso país as pessoas a quem Zita Seabra azucrinou o juízo por não obedecerem à linha do partido. No fim do seu percurso, Zita Seabra azucrina-lhes o juízo por lhe terem obedecido a ela e à linha do partido. No seu editorial de anteontem, José Manuel Fernandes defendia o rei de Espanha e o Papa. Mas para o fazer, teve necessidade de partir da velha dicotomia marxista que divide o mundo entre reformistas e revolucionários. O meu problema não é ela ser velha nem marxista, mas obliterar completamente uma personagem mais importante: a do democrata. E na tréplica de ontem ao meu texto, Helena Matos transformou a defesa que eu fizera da pedagogia democrática de Zapatero numa fantasiosa apologia de Chávez, que seria meu “ditador de estimação”. Eu poderia ficar ofendido, mas a falsidade é tão evidente a quem tiver lido os dois textos, que vou delegar no discernimento dos leitores e poupar espaço. Talvez eu esteja a ficar inoculado. Fico apenas contente por ter servido para alguma coisa o meu texto: para a Helena Matos de segunda-feira a intervenção de Zapatero não existia; para a Helena Matos de quarta ela é “belíssima”. São, enfim, quatro exemplos de que é fácil as pessoas saírem do marxismo mas é mesmo muito difícil a retórica marxista sair das pessoas. Ela continua a reciclar os seus velhos vícios — as amálgamas, a rigidez, o maniqueísmo, a culpa por associação e até a pura fabricação — para o debate público. *** Chávez chama “fascista” a Aznar mais ou menos como Helena Matos chama “ditador” a Chávez — de forma repetitiva e sem a mínima consideração pelo significado das palavras. Reagindo a isso, Zapatero pediu respeito pelo seu antecessor e pelo povo que o elegeu. Mas foi talvez outra coisa que fez dele, naquele momento, um campeão da democracia: ter exigido respeito pelas palavras, que são os alicerces do debate honesto. Aznar não é um “fascista”. Nem a um adversário se devem distorcer as palavras. “Fascista” não significa dirigente eleito de que Chávez não goste, tal como “ditador” não significa dirigente eleito de que Helena Matos não gosta. Leio a resposta de Zapatero assim: sobretudo a um adversário não se devem distorcer as palavras. Juan Carlos não discursou defendendo a democracia ou as liberdades. Limitou-se a mandar calar. Eu, que antes de ser de esquerda sou anti-autoritário, sinto-me distante de quem manda calar e não entro em êxtase quando vejo alguém mandar calar. Nem que toda a gente à minha volta aplauda. Sobretudo quando toda a gente à minha volta aplaude. Às vezes digo-me até que a grande diferença, antes de ser entre esquerda e direita, é entre quem gosta de deixar falar e quem gosta de mandar calar. Há gente de esquerda que gosta de mandar calar — Chávez é um bom exemplo — e também gente que gosta de ver mandar calar, por interposta pessoa, enquanto é de esquerda ou quando passou a ser de direita. Não estava com eles antes, não estou com eles agora. Para ser completamente sincero, eu entendo a satisfação de obedecer a um impulso muito humano. Mandar calar é coisa que alivia. E depois? Como visão política, é curto. A realidade não obedece às nossas birras. O populista Chávez ficou justamente diminuído quando Zapatero o acusou de não saber respeitar o povo. Mas lamento dar esta notícia: Chávez não desapareceu por Juan Carlos lhe ter mandado que se calasse.
(texto de Ana Matos Pires) Através do Público on line cheguei a esta notícia «Aborto: Ordem dos Médicos não muda código deontológico». Nem preciso dizer que discordo em absoluto, ainda para mais a menos de um mês das eleições na Ordem, mas assim a modos que com os olhos definitivamente em bico fiquei ao ler o último parágrafo da notícia «O bastonário nota que concorda com o parecer da PGR quando este refere que, em caso de discrepância, a lei se sobrepõe ao código deontológico mas discorda da necessidade de alterar o regulamento por causa disso. E exemplifica: "O limite legal para andar na estrada é 120 quilómetros por hora mas não precisamos de mudar os veículos para saber que temos de cumprir a lei".» Publicamente assumo a quebra de um preceito deontológico, aquele que me pede para considerar os colegas como meus "irmãos". O tanas, recuso-me a ter "irmãos" assim, ponto. É que nem atinge os níveis risíveis, nem a "querelância", nem a má criação mascarada de frontalidade do Alberto João, fica-se mesmo só pelo patético
Vou confessar uma coisa: quando me convidam para falar sobre a discriminação em função da orientação sexual, já não sei que diga.
Não me entendam mal – não é que ache o assunto desinteressante (caso em que não estaria aqui), é porque ao fim de tantos anos a pensar e a falar e a escrever sobre isto sinto que já esgotei todas as abordagens. A interrogativa, a explicativa, a agressiva, a reivindicativa, a contemporizadora, a sensível, a sensata, a paciente, a impaciente. E, no entanto, é preciso paciência. É preciso reciclar. E continuar. É preciso continuar não só porque o problema continua a existir como porque há demasiadas pessoas a pretender que ele não existe. A maneira mais perversa de discriminar – e que é, significativamente, a que tem sido adoptada nos últimos tempos por quem quer boicotar esta luta pela igualdade – é dizer que não há discriminação. Que as ‘diferenças’, entre aspas, que existem, até legalmente, no tratamento de umas pessoas e outras se devem às diferenças intrínsecas entre essas pessoas. Que gostar, amar, desejar pessoas do mesmo sexo e querer viver de acordo com isso é assumir uma dissensão, uma diferença voluntária, acintosa, que convoca e justifica, como preço a pagar, todos os exílios. Vou confessar outra coisa: não tenho a menor paciência para esta conversa. Não tenho e acho que ninguém deve ter. Não se trata de não saber encaixar uma opinião diferente, trata-se de não contemporizar com a intolerância e com um discurso e uma atitude que só têm um objectivo: discriminar. E portanto fazer sofrer. Humilhar, causar dor, fazer outras pessoas infelizes. Juncos Silvestres, que vi há muito tempo, quando estreou, é, como o recordo, um filme sobre a adolescência e portanto também um filme sobre o amor e o sexo e sobre a natureza – a natureza do amor, do sexo e da própria natureza. É um filme muito bonito e muito recomendável como filme – mas também como pedagogia. Apetece-me aliás prescrevê-lo como tratamento. A toda a gente, e sobretudo a quem ainda hoje se atreve a falar da homossexualidade como doença e a propôr-se tratá-la. Com que autoridade o faço, perguntar-se-á. Com a mais alta: a do respeito que exige respeito, a do igual que exige igualdade. É só o que é preciso: respeito e igualdade. E em doses reforçadas, porque o diagnóstico é de grande carência. (lido hoje as 21.30h na cinemateca, antes da projecção de juncos silvestres -- les roseaux sauvages, andre téchiné, 1994 --, a convite da comissão para a igualdade)
do táxi, no meio da rua da prata. um homem magro de óculos e blusão de ganga, palmas das mãos para cima, olhos fechados, ao sol. no passeio, parado, as 11 da manhã. ao sol. no metro do marques, junto a saída da duque de loulé. um homem de cabelo alourado, óculos e rosto marcado olha-se, imóvel, sem expressão, no espelho da cabine de fotos a la minuta. na rua do poço do borratém, junto ao martim moniz. tres jovens -- uma loira, uma muito morena ('a espanhola', diz o rapaz que fura os cintos na loja em frente) e uma muito branca e rechonchuda de cabelo preto, as tres de jeans largas, descaídas, e tops curtos e justos, desafiam os clientes no passeio. ao mesmo tempo, puxam por tres bananas, descascam-nas e comem-nas. tres raparigas de rua a comer tres bananas na rua ao mesmo tempo: ao meu lado, uma senhora de 60 anos espera que a olhe para me dar a ver o seu escandalo. no passeio das raparigas, um senhor de idade cambaleia ao passar pelo quadro. elas riem.
O teclado do meu computador está a desaparecer. O N não se vê, como o R, raspado raso. Em breve, o M, o I e o O merecerão igual olvido. Do S só resta o traço de uma curva, o U, ui, está quase a meio, o T tem pouco mais que a linha vertical e o D desliza para o nada. Ah, e do A há já pouco mais que o traço horizontal e a perna esquerda.
Isto nunca tinha acontecido antes. Entre os disponibilizados por sucessivos empregos e os que fui comprando (e estragando) para uso caseiro, entre as gigantescas, lentas e feiosas máquinas de há vinte anos, sem internet (houve um tempo em que não havia internet, alguém se lembra?) nem mail nem pens, com umas enormes disquetes quadradas para levar os dados, textos, imagens – o que fosse -- de um lado para o outro e os elegantes, levíssimos e supersónicos laptops de agora, devo ter gasto uns dez computadores. Mas não me lembro de ver um sortilégio assim. Como não escrevo mais agora do que escrevia antes – talvez, ao contrário, escreva menos – e este computador tem dois anos e meio, devo depreender que tive azar no modelo ou a marca -- a minha marca habitual -- desceu os seus parâmetros de qualidade. Mas, seja lá qual for o motivo, posso pela primeira vez ajuizar que letras uso mais. As vogais, desde logo: esperava que fossem as vogais. Faz sentido. Mas o R? O S? Se me perguntassem, assim de repente, que consoante mais se gasta, diria o Q. Que para aqui, que para acolá, quando, porque, quá-quá… Qual quê. O ésse, o érre, o éne: esses sim, são radical e repetida e rigorosamente necessários. Sem rivais, nem sonhar. Por exemplo, poder-se-á julgar que a vírgula, ali mesmo ao lado do M (ou da sua memória), é muito usada. E o ponto, ao lado da vírgula. Nem pensar: no meu teclado, estão para as curvas. O mesmo para o til e o acento circunflexo, assim como para os acentos grave e agudo: nem uma beliscadura. O P está como novo, o B igualmente, O C, o L e o F como se nada fosse com eles. Quem olhe para o H e o G, no centro do teclado, dirá que nunca são usados. O C cedilhado, então, parece que acabou de chegar da fábrica. Há mais mistérios: uma funcionalidade essencial e de frequentíssimo uso, como o shift, mantém o aspecto de uma seta virgem. Como o delete. Isto não faz sentido, pois não? Dá para suspeitar que há teclas mais resistentes que outras. Ou que, de algum modo, ao passar os dedos pelo teclado se criam zonas de maior desgaste, independentemente do uso das letras. Talvez alguém já tenha feito um estudo, uma monografia, uma tese de mestrado ou doutoramento sobre as letras mais usadas na escrita em português. Talvez não haja padrão e isso varie de pessoa para pessoa. Talvez eu prefira palavras com tês e ésses e émes e énes, quando outros se pelam por vocábulos com bês e cês. Um Zé ou uma Zeza usará, quem sabe, os zês até ao osso. Uma Paula ou um Pedro fará o pê em picado. Um Vasco vai e vem em volta do V. O desaparecimento das letras tem uma vantagem, porém. O de permitir a alguém como eu -- nunca soube realmente dactilografar e só uso um ou dois dedos para martelar as teclas -- concluir que, afinal, sabe, sem saber, o lugar de todas e cada uma das letras e sinais. É só preciso não pensar nisso. Não interrogar o movimento da mão, não olhar, entregar-me à inteligência dos dedos. À simbiose entre eles e o teclado. As letras rasuradas são assim, como foi o calo no dedo médio da mão direita (direita, porque sou dextra) no tempo nas canetas e dos lápis, a evidência de uma paixão transferida. Dos tendões e dos ossos, da carne e da pele e disso a que se chama alma para o plástico da máquina. Deve ser a isto que se chama progresso. (publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 11 de Novembro)
todas as mortes são súbitas. todas nos remetem para um silêncio essencial. e ao mesmo tempo para a necessidade, ou até a vontade, de dizer. qualquer coisa. dizer qualquer coisa é só o que sabemos fazer. é para isso que servimos – e, naturalmente, não servimos para nada, mas também não há nada para servir a não ser isso, aquilo para que servimos, aquilo que somos.
(texto de Ana Matos Pires) Como todas as semanas, comprei a revista Visão e, por indicação fraterna, fui directamente para a página 100, onde está parte do texto sobre a "descoberta" da homossexualidade masculina num homem que está casado com uma mulher – curioso o facto de não existirem (?) histórias da "descoberta" do lesbianismo numa mulher casada com um homem… Nem queria acreditar no que via – e ainda dizem que os ingleses têm um fácies inexpressivo, safa - e lia – "A homossexualidade é um complexo, um transtorno da identidade sexual. É uma doença e tem recuperação", by Margarida Cordo, 46 anos, terapeuta familiar. Esfreguei os olhos com força e voltei a olhar. Afinal era MESMO verdade, tinha lido correctamente. E, mais à frente, diz-se que a senhora já acompanhou «quatro casos deste tipo, mas somente dois continuam em recuperação» e continua «O problema, acrescenta, pode ser superado em 30% dos casos, pelo recurso à terapia individual, coadjuvado, se necessário, pelo método dos 12 passos, usado nas dependências. A meta é conseguir a monogamia e o aprofundar de laços com o cônjuge (o que acontece numa escassa percentagem dos casais estudados por Ami Buxton).». Quem é esta senhora? Qual a sua formação de base? Onde obteve a creditação de terapeuta familiar? A quem tem que prestar contas sobre a sua actividade profissional? É que isto chama-se má praxis! Que fariam se um determinado cirurgião vos desse uma naifada num estômago não doente? Ou se vos quisessem tratar um panarício no dedo mindinho da mão direita que, por mero acaso, havíeis perdido na adolescência? Chateavam-se, verdade? Então e quando alguém trata uma doença que não é doença assumindo que é doença? Bem sei que são só dois casais, os outros dois que integravam a casuística (!!!) da senhora bazaram - felizmente -, mas não deixa de ser uma alarvidade. Parece-me lícito colocar a questão à Ordem dos Médicos e à Associação Pró-Ordem dos Psicólogos. Fá-lo-ei. Ps: Estou com um pequeno problema, não sei como hei-de formular a questão, que nome dar à pretensa entidade clínica para perguntar se existe? Que tal "Síndrome da bicha dependente do pirilau fora de portas que abre o armário porque já não consegue comer mais grelos dentro de portas"? Pss: Vão, a correr, ler o Maradona antes que desapareça.
Leio a história nos jornais. Começa a ser aparentemente tão comum, a história (apesar de ser tão absolutamente excepcional), que nem dei por ela no dia em que aconteceu. Desta vez foi na Finlândia. Ele - é um ele, como de costume - tinha 18 anos e, como vai sendo costume, fez um vídeo a anunciar o feito. Pekka-Eric Auvinen vivia numa cidadezinha que as notícias descrevem como "pacata". Um "lugar tranquilo", diz um texto, depois de descrever a forma como o rapaz mais a sua Sig Sauer de calibre 22 andaram pelos corredores do liceu onde ele frequentava o último ano a disparar sobre quem aparecesse. Oito morreram logo ali - a directora da escola, cinco rapazes e duas raparigas -, e há uns 20 feridos graves. Isto tudo num lugar tranquilo, num país tranquilo onde o Governo convocou uma reunião de emergência e os jornais e as TVs vão fazer especiais e debates, esquadrinhar a vida e as referências, as leituras e os gostos e as relações do "rapaz muito sorridente" que fez "aquilo".
Vai-se falar de Rammstein, a banda heavy de som tenebroso que Pekka-Eric ouvia, como se falou de Marilyn Manson a propósito dos dois liceais americanos que puseram o liceu de Columbine no mapa-múndi. Vão-se decompor, ler e reler e repetir as palavras declamadas no vídeo-testamento que Pekka-Eric deixou no YouTube (retirado após 200 mil visitas): "sou um cínico existencialista, anti-humano humanista, anti-social-darwinista e uma espécie de deus ateu" e o dizer na T-shirt negra da imagem em que empunha a pistola: "Humanity is overrated" (a humanidade é sobrevalorizada). Vai-se falar de niilismo e de Nietzsche e de internet - porque ele era fã de Nietzsche e do niilismo e, obviamente, frequentava a net. Mas quando ele diz "ódio, estou cheio dele e adoro-o", lembro como adolescente adorei Almada Negreiros e a sua Cena do ódio e idolatrei Nietzsche e tive, como tantos adolescentes, o culto do suicídio e dos suicidas e da morte, cultivei a mesma cor - o negro - e a mesma ideia romântico-trágica da existência e vivi nos mesmos lugares tranquilos - todos os lugares são tranquilos até acontecerem estas coisas (ou outras igualmente horríveis, como a morte de um homem que os "amigos" deixaram uma madrugada amarrado à porta de um café). Mas eu, como milhões de outros adolescentes, não fui o Pekka-Eric. Porquê? Porque não era o Pekka-Eric, porque não me tornei o Pekka-Eric. Nenhuma explicação para isso, nada para perceber a não ser que aconteceu e que, por isso mesmo, exerce sobre nós, todos nós, um inquietante fascínio. Gus Van Sant fez um filme sobre isso (Elephant, 2003), sobre a perplexidade e o silêncio e o horror e ainda outra coisa mais terrível ainda: uma espécie de serenidade. A do lugar tranquilo, sem noção de culpa (pelo contrário - "Sou a lei, o juiz e o executor, não há maior autoridade que eu", sentenciou Pekka-Eric), de onde nos olham estes pequenos anjos vingadores: a redenção que tanto queremos não é para eles, é para nós. (publicado hoje no dn)