Quando oiço alguém tecer loas ao “muito melhor” que se vivia antigamente fico entre o perplexo (na verdade, aparvalhado) e o enervado. Mais ainda quando as pessoas em questão têm idade não só para ter juízo como para saber que o que dizem é uma enormidade.
Antigamente, pois. Ora vejamos: qual seria o rendimento médio das famílias portuguesas nesse antigamente? Quantas crianças andavam na escola – e, coisa sem importância, quantas morriam em tenra idade e, coisa ainda menos relevante, quantas mulheres morriam de parto ou de outras, como se diz, “complicações relacionadas com a gravidez” (o aborto, por exemplo)? Qual a esperança média de vida? Quantas casas tinham electricidade e água canalizada – e, outra coisa que não interessa para nada, casa de banho? Quantos tinham transporte próprio? Quantos faziam férias – quanto mais na praia, e no estrangeiro? As famílias portuguesas estão sobreendividadas? Parece que muitas estão. Mas será porque as “coisas” estão “mais caras”? Na verdade, a maioria das coisas estão, relativamente, muito mais baratas e muito mais acessíveis – para não falar do facto de haver coisas que “antes” não havia. Não é preciso lembrar os telemóveis e os computadores nem recuar ao tempo pré-25 de Abril para fazer a prova. Por exemplo: quando andei na faculdade, há vinte anos, ninguém, de entre os meus colegas, a maior parte da classe média, ia de carro para as aulas. Ninguém mesmo. Toda a gente andava a pé, de metro, de autocarro e de comboio. Hoje, basta ir a uma qualquer universidade para constatar que não há um buraco onde não esteja metido o carro de um aluno. Isto é “viver pior”? Viver pior é, por exemplo – e nem é dos piores --, como viviam as famílias que ocuparam, nos anos sessenta, a Brandoa. Classe baixa e média-baixa, polícias, empregados de escritório, de bancos, operários que procuravam uma casa para alugar na zona de Lisboa e ocuparam os prédios auto-construídos no loteamento clandestino de uma quinta senhorial. Prédios sem água canalizada, ruas de lama (“tulicreme”, chamou-lhe uma moradora numa reportagem dos anos setenta), cinco andares a acartar baldes de água da bica da rua. Ainda assim, tudo se alugou. As rendas eram “razoáveis” e em Lisboa não se arranjava nada àquele preço. Para ir trabalhar, os moradores iam de galochas mais um saco de plástico com os “sapatos bons”. Escondiam as galochas nuns “arbustos”, para depois, à vinda, as calçarem de novo. Assim anos inteiros. Isto era viver melhor? Há pobres em Portugal? Há, há pobres. Sobretudo nas cidades. Idosos pobres, com reformas miseráveis a viver em apartamentos miseráveis a pagar rendas miseráveis, a comer pouco e mal e sem dinheiro para os remédios. Ainda assim, convém lembrar que a reforma garantida, por mísera que seja, foi uma das “conquistas” do “pós-Abril”. Podemos e devemos hoje reclamar contra a exiguidade das reformas, certo – mas existem, pelo menos até o sistema aguentar. A maioria dos portugueses vivem hoje muitíssimo melhor que há 40 anos, que há 30 anos, que há 20 anos. Comparar materialmente o viver de “antigamente” com o de agora louvando o passado é não só uma incompreensível estultícia como um insulto a quem efectivamente viveu mal – e àqueles que ainda vivem mal neste país. É uma espécie voluntária de amnésia, num laborioso reescrever do passado como fábula que, paradoxalmente, adormece em vez de acordar. Se tudo está assim tão pior no país dos apartamentos com aquecimento central, jacuzzi e home cinema, das famílias com três carros e o Natal em Pipa, não espanta nem revolta que haja mesmo gente a viver mal. Porque, afinal, é normal – deve ser o destino. (publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 4 de novembro)
o texto não foi escrito para o cinco dias (quem me dera) mas para o dn de domingo. mas é tão bom e bonito que me apeteceu postá-lo. tenho a certeza de que meu amigo filósofo (e padre) anselmo borges não mo levará a mal. Neste domínio, há um pudor que nos habita. Peço, pois, a compreensão benevolente do leitor. Quando os meus pais morreram, olhei - era o fim de um mundo! - e constatei que o que deles restava não eram eles e lembrei-me daquela pergunta lancinante que Tolstoi coloca na boca de Ivan Ilitch moribundo: onde é que eu estarei, quando cá já não estiver? Sempre que passo pela terra que me viu nascer, faço uma visita ao cemitério e, ali, diante dos seus túmulos, ouço as palavras do anjo às mulheres diante do túmulo de Jesus : "Não está aqui!"Diante da morte, fazemos a experiência do mistério pura e simplesmente. A morte é o absoluto, sem relação. O absoluto tem uma dupla face: a morte e Deus. Daí, tudo quanto dizemos sobre a morte e sobre Deus sentirmo-lo como nada que nos convoca para o silêncio, segundo o preceito de Wittgenstein: "Sobre aquilo de que se não pode falar deve-se calar."Para onde vão os mortos? O que é morrer e o que é a morte? Depois, o quê?Impressionou-me em extremo a declaração do teólogo J. I. González Faus sobre o pai, que lhe transmitiu a fé e que considera "uma grande personalidade": "Terminou a sua vida derrotado e duvidando de Deus como quase todos os humanos."A morte e o seu depois constituem para nós uma tenaz: impensáveis que nos obrigam a pensar. Impensável que tudo acabe como impensável qualquer depois. Lá está Pascal: "Incompreensível que Deus exista, e incompreensível que não exista; que a alma seja com o corpo, que não tenhamos alma; que o mundo seja criado, que o não seja, etc."O filósofo ateu E. Bloch é modelar nestas perplexidades. A mim perguntou-me ironicamente onde é que meteria tantos milhares de milhões de seres humanos, se houvesse ressurreição dos mortos. Um dia, em Viena, disse que, se houvesse ressurreição, as galinhas estoirariam a rir. Mas, na juventude, admitiu a reencarnação. Na maturidade, teorizou sobre "o núcleo do Humanum extraterritorial à morte".Bloch casou com Else von Stritzky, uma cristã de Riga, e a relação que entre os dois cresceu foi a de um amor como há poucos. Ela morreu jovem, e o filósofo foi fixando no Diário a sua dor, aliviada pela esperança do reencontro "do Outro Lado" (Drüben), "no Além" (Jenseits). O teólogo J. Moltmann contou-me que, poucos dias antes da morte, lhe perguntou como reagia a esse desafio, tendo ele respondido: "Estou curioso" - note-se, porém, a força da palavra alemã "neugierig", com o sentido de ansioso por novidades. Moltmann também escreveu que "na véspera de morrer, ao entardecer, ele escutou mais uma vez a sua música mais querida, a abertura de Fidelio, de Beethoven, com o sinal das trombetas para a libertação dos cativos no final". Essa passagem, que associava à Primeira Carta de São Paulo aos Tessalonicenses, 13, 16: "Quando for dado o sinal, à voz do arcanjo e ao som da trombeta de Deus, o mesmo Senhor descerá dos céus e os que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro", sempre o comovera. É que, como escreveu, "em Beethoven, pré-anuncia-se a chegada de um Messias. Erguem-se desde as masmorras sons de liberdade e de recordação utópica. O grande momento chegou, a estrela da esperança cumprida no aqui e agora". Depois da morte, é a eternidade: a eternidade do nada ou eternidade de Deus. Mas não se tratará da dupla face da mesma eternidade, como diriam, no limite, os místicos? Não será a pergunta - para onde foram os mortos?, onde estão os mortos? - que é mal formulada? Porque os mortos não foram nem estão: a pessoa dos mortos é.Por mim, nos dias 1 e 2 de Novembro - os dias em que as nossas sociedades científico -técnicas, que fizeram da morte tabu, permitem a visita dos mortos -, coloco um CD com o Requiem Alemão de Brahms e outro com o Requiem de Mozart no leitor de CD, em homenagem aos meus pais, amigos e todos os mortos - poderão ser uns cem mil milhões. A música diz-nos o indizível: o que é existir simultaneamente no tempo e fora dele.
texto de Ana Matos Pires Assembleia Geral da World Medical Association (WMA) 3-6 de Outubro de 2008, Copenhaga, Dinamarca A obrigação dos clínicos em respeitar a vida humana, mais que em a preservar, foi tema em destaque na comunicação do Dr Jon Snaedal, novo Presidente da Associação Médica Mundial (WMA). Durante o seu discurso presidencial inaugural na Assembleia Geral anual da WMA, que decorreu em Copenhaga, J. Snaedal, geriatra Islandês e novo Presidente da organização, assinalou que a mudança de uma palavra no Código Internacional de Ética Médica – de «o médico deve sempre ter em mente a sua obrigação em preservar a vida humana» para «o médico deve sempre ter em mente a obrigação em respeitar a vida humana» - "reflecte uma mudança fundamental na forma como os médicos pensam os seus deveres". Quando tiver oportunidade, hei-de propor uma reflexão partilhada sobre ética, moral e deontologia, só cá por coisas.
quando em setembro de 2006, perante o anúncio da chegada de pedro arroja a blogosfera, via blasfémias, postei no glória fácil uma entrevista que lhe tinha feito em 1994 na grande reportagem, levantou-se uma tempestade blogosférica. no meio da qual houve muita gente a defender arroja, nomeadamente certificando que as suas afirmações sobre a escravatura dos negros nos eua e sobre os negros em geral não seriam racistas -- eu e quem assim as achava é que não teriamos percebido bem, aliás seriamos mesmo incapazes de perceber, aprisionados que estamos na nossa visão 'politicamente correcta' (pois então, não podia faltar essa), a elevação de um espírito 'livre' como o de pedro arroja. sabemos todos o que aconteceu: pedro arroja escreveu no blasfémias durante uns meses, entre alguns daqueles que tanto tinham defendido o seu 'espírito livre', e saiu quando começou a dizer umas coisas um pouco racistas sobre os judeus (presumo que afinal há gente com desvios 'politicamente correctos' no blasfémias). e zás, ei-lo de freio nos dentes. ou seja -- a fazer com os judeus o que tinha feito com os negros. engraçado que não se oiça na blogosfera portuguesa, como vasco m. barreto muito bem sublinha, um coro de gente 'livre' a defender o seu direito de ir arrojadamente 'contra o politicamente correcto' como se ouviu, ainda há 5 minutos, a propósito do dr. watson. e porque, porque? elementar.
a burrice e a soberba incompreensível e insuportável da atitude genérica da administração pública portuguesa está, creio, condensada na pequena novela em que, descobri recentemente, entro com a camara municipal de lisboa mais aquela coisa da taxa municipal de esgotos.
a taxa municipal 'conservação' de esgotos, que não sei para que serve mas deve servir para conservar os esgotos (eheh), é uma coisa que se paga anualmente e que é calculada em função do 'valor patrimonial' da propriedade (o que, cá para mim, não faz o menor sentido, já que não encontro nenhuma relação entre o que se paga por uma casa ou a sua avaliação nas finanças -- que, como se sabe, são coisas muito diferentes -- e os esgotos que lhe dizem respeito, mas enfim, adiante) e que aparece nas nossas caixas de correio por volta do outono. ora, devido a um extraordinário e reiterado erro da cml, que me enviava para cobrança na minha morada não só a taxa correspondente a minha casa como a taxa correspondente a casa de outra pessoa (e portanto de outra morada, claramente discriminada), entrei em contacto com aquela coisa chamada 'serviços'. e lá no meio da conversa tendente a resolver a questão da taxa enviada para a morada errada, foi-me dito que eu devia a taxa de 2004. eu e a pessoa para quem enviavam, para a minha morada, a respectiva taxa. a taxa em causa, de menos de 20 euros, é pagável nos multibancos. de modo que perguntei, naturalmente, por que motivo não me haviam enviado uma segunda carta a solicitar o pagamento da quantia em atraso ou, em alternativa, não haviam solicitado esse pagamento, eventualmente acrescido de juros de mora ou uma multa (se fizessem muita questão, embora me parecesse mal, já que existe uma coisa chamada extravio de correio e como a cml não envia as cartas com aviso de recepção, não sabe se estas chegam ou não ao destino) no ano seguinte. a resposta da funcionária da cml foi notável: 'então, as pessoas sabem que todos os anos tem de pagar esta taxa e não receberem a carta não é desculpa. se a pessoa não paga, entra em relaxe [relaxe é uma palavra linda, não é?]. o processo está nos serviços jurídicos.' ou seja: se bem entendi, estou a ser processada pela camara por não ter pago qualquer coisa como 16 euros em 2004. fui aliás informada de que já devo '35 euros' da tal dívida de 2004 e que a única forma de evitar o processo é ir pessoalmente pagar (com certeza, já estou a ir) o que devo a camara. isto não é lindo? só uma instituição que não se preocupe a mínima nem com o que os seus clientes (neste caso, os munícipes que a sustentam de alto a baixo, incluindo a simpática senhora que me atendeu, a quem manda os envelopes, a quem trabalha nos serviços jurídicos e aos malfadados esgotos) pensam dela nem com rentabilidade e gastos inúteis se dá ao luxo de processar alguém por causa de dever menos de 20 euros, sem dar a esse alguém sequer notícia de que deve e a hipótese de pagar a dívida de forma rápida e cómoda. multiplique-se isto pelo resto das funções camarárias e temos o panorama do desprezo e da inércia da autarquia da capital. ah, e só mais uma coisa: se temos todos a obrigação de nos lembrar de que a taxa dos esgotos se paga todos os anos no outono, como a santa funcionária teve a amabilidade de me dizer, talvez a cml possa poupar o envio dos envelopes e das contas, não? e zuca, passar os 'relaxes' todos para o departamento jurídico. isso é que era inteligencia. se calhar tinham até de contratar mais umas pessoas, pagas pelos impostos pagos pelos municípes, para dar vazão a tanto processo contra os municípes. olé.
we've braved its ghosts often together, and dared each other to stand among the graves and ask them to come... but heathcliff, if i dare you now, will you venture? é a quinta frase completa da página 161 de wuthering heights da routledge english texts. juro, carla. parece mentira que saia assim tão perfeita uma busca ao calhas, but this is indeed uma das maiores da great literature. o que significa, obviamente, que a escolha do livro, embora tenha sido o primeiro em que peguei para este efeito, não foi 'ao calhas' -- mas que escolha é? e agora, i dare -- eu que odeio estas coisas de cadeias, mas pronto -- o vasco (porque claro); o meu maninho florentino (porque é maninho e florentino); a fuckitall (porque nunca vem aos jantares), o besugo (porque o maradona já está) e a laura (porque também gosta de e e cummings). e mais o fnv (por causa do odi et amo) e o miguel (por tudo e mais alguma coisa) e o pedro (porque fez uns posts fantásticos sobre os rankings das escolas).