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jugular

luís filipe menezes é lelé da cuca

O dito faz parte da história da democracia portuguesa: foi cunhado pelo ilustre Marcelo Rebelo de Sousa, na sua encarnação de jornalista do Expresso (que dirigiu) e de redactor da respectiva secção de mexericos politiqueiros e rosa, a Gente . "Balsemão é lelé da cuca", escreveu ele no meio de um texto, antecipando gargalhadas dos jornalistas da secção de copy desk antes de apagarem da versão final a apreciação sobre o proprietário do jornal, à época primeiro-ministro. Mas nenhum dos copy desks, por distracção ou por respeito pela hierarquia ou por serem ferozes adeptos da liberdade de expressão ou por pura perversidade (talvez tivessem as suas próprias ideias sobre quem era ou deixava de ser lelé da cuca), "corrigiu" o texto. E lá foi Pinto Balsemão tratado de lelé no seu próprio jornal, para gáudio do país, do léxico nacional e da aura um pouco disparatada do professor. Mais de vinte anos depois, esta história do lelé da cuca parece feita à medida quando um líder do partido que Marcelo dirigiu resolve embarcar na sempiterna demagogia populista das oposições a propósito das alegadas "ondas de crime" (assim de repente recorda-se, na mesma linha, Guterres, à beira das legislativas de 1995, a falar sobre um assalto de que tinha sido vítima uma pessoa da família mais a crucificação de Fernando Gomes, ministro da Administração Interna em 2000, a propósito dos assaltos das bombas de gasolina da CREL) e solicitar ao primeiro-ministro "um pedido de desculpas ao país" por ter sido assassinado mais um segurança da noite portuense. Que me lembre, apesar das bastas precedências nestas retóricas de taxista indignado - peço imensa desculpa aos honoráveis representantes da profissão, mas as coisas são o que são e tenho provas do que digo, ai se tenho -, nunca um candidato a primeiro-ministro tinha ido tão longe no dislate. De tal forma longe que o próprio Santana Lopes, seu aparente braço-direito, fez questão de se demarcar, conseguindo, por contraste, parecer sensato e ligeiramente credível no seu "apelo à reflexão". Menezes, como o Marcelo do Expresso, não tem copy desk que lhe corrija os textos, as ideias, os sound bites. Aquilo sai assim - falta de superego ou de conselheiros com tino, falta de noção ou de revisão, pouco importa. É o resultado que conta, e o resultado é deplorável. Pode ser que ressoe na alma autoritária de uma nação que, como escreveu o blogger Henrique Raposo, clama sempre por "respeitinho e sossego" como quem não se importa de pagar por isso o preço de um estado policial. Mas, como escreve Raposo, "Portugal é dos países mais seguros do mundo. Dizer que Portugal é inseguro é ter uma paróquia como cérebro." Ou nada, digo eu. (publicado hoje no dn)

do preconceito fácil e da glória da bloga

sou uma pessoa muito preconceituosa. sei disso -- e saber disso ajuda-me a tentar identificar os meus preconceitos e lidar com eles. para saber disso, e para o reconhecer, vários acontecimentos contribuiram. um deles é muito recente -- a minha entrada na blogosfera. entrei tarde, em 2005, e levei algum tempo a perceber como isto funcionava. ao princípio, quando a ana (sá lopes) e o joão pedro (henriques) me diziam 'olha, o não sei quantos meteu-se contigo', eu nem sabia do que eles estavam a falar. depois fui coleccionando 'favoritos' (embora alguns muito pouco apreciados) e aprendendo a aquilatar as pessoas exclusivamente pelo que escreviam, já que de muitas delas não sabia nem a idade nem o sexo e muito menos as filiações políticas e o tipo de sapatos que calçam (muito importante, isto dos sapatos). isto tudo para dizer que fui simpatizando e antipatizando com escritas e estados de espírito e declarações de intenções. fui dando idades e rostos a pessoas que nunca vi -- até as ver.  e, quando fiz parte do blogue sim no referendo, para o qual o daniel oliveira, pai da belíssima ideia, teve a amabilidade de me convidar, passei a conhecer em carne e osso muitas das pessoas que só conhecia de assinatura. e outras que conhecia da tv e dos jornais, como o vasco rato, com quem nunca me ocorreria poder ter afinidades, quanto mais amizade. estava muito enganada -- sobre elas e sobre mim. é bom saber que se podem descobrir coisas destas relativamente tarde na vida. que, por exemplo, aquele gajo que escreve no diário económico e que nunca me ocorreria ler -- eu não leio cenas sobre economia, sou preguiçosa de mais para isso -- é um puto que vive em oxford com quem ao fim de cinco mails descubro ter cem mil coisas em comum. que aquele gajo empresário 'de direita' que escreve no 31 da armada e no atlântico e que conheci numa boleia a caminho do prós e contras sobre o aborto é uma das pessoas mais espantosas que conheci na vida (ok, isto é piroso, mas não me ocorre outra fórmula). que uma pessoa que gosto tanto de ler e com cujas opiniões me identifico tão amiúde, como o adolfo mesquita nunes, é, imagine-se, do pp -- coisa que só descobri meses e meses depois de o ler. que o daniel oliveira, de quem tinha a ideia de um aparachik (sorry, não te zangues, daniel) é uma das pessoas mais liberais que conheço. enfim, podia continuar on and on. e podia falar também do quanto a blogosfera serve de revelador e lupa, não só para o melhor como para o pior das pessoas. de como percebi que há torquemadas de 20 e 30 anos e ainda por cima com orgulho de o serem e cérebro para conseguirem escrever duas linhas seguidas e descaramento para chamarem intolerantes aos que os combatem e para ainda se apresentarem como vítimas (e serem vistos como tal por tanta gente, deus). mas isso agora não interessa -- fica para outro post, ou melhor, fica para a vida toda, porque isto é, como diz o outro, um combate rua a rua e porta a porta. agora só me apetece dizer o que disse. e que tenho muito orgulho de ser amiga do tiago mendes e do pedro marques lopes e do vasco rato -- e de que eles sejam meus amigos. e tenho orgulho em mim, por ter sido capaz de perceber o quanto os meus preconceitos -- estes e todos os outros, os que tive e os que ainda tenho --, são ridículos.

do respeito e da educação

uma das cenas de mais espantosa má educação e de mais chocante desrespeito a que assisti na vida passou-se num estúdio de tv, mais exactamente na sic, no final dos anos noventa, e numa emissão directa. não houve gritos nem caretas e muito menos cadeiras pelo ar. ninguém se levantou, ninguém abandonou o estúdio. e estou certa de que muito pouca gente reparou. tratava-se de um debate sobre os direitos dos homossexuais (não é uma expressão feliz, mas tv é tv, mass media é mass media). estavam presentes gonçalo dinis, pela ilga, e sérgio vitorino, pelo grupo de trabalho homossexual do então psr (creio que era assim, já nem me lembro bem). não me recordo se estava também sérgio sousa pinto. a quarta pessoa era maria josé nogueira pinto. que a dada altura disse para o gonçalo e para o sérgio, num tom muito simpático e polido, esta frase: 'mas eu acho que voces tem direito a existir'. tenho a certeza de que há imensa gente a quem eu teria de explicar por que é que nunca mais esqueci esta frase, a expressão de quem a disse e a expressão daqueles para quem foi dita (que nem responderam, o que é, isso sim, um sinal de espantosa boa educação). é a mesma imensa gente que não entende que a intolerancia não é menos intolerante, que a violencia não é menos violenta quando não grita, não chama nomes nem brande cacetes e se julga tão tolerante e pacífica que até reconhece aos outros o direito a ser -- imagine-se, o direito a existir. a 'tolerancia' que se coloca no lugar de dizer aos outros, muito educadamente, claro, que podem viver, que não tem de ir a correr mandar-se da ponte. é da mesma cepa da tolerancia que exige que sejamos tolerantes, por boa educação, até, com 'as ideias' de um mário machado ou de um salazar, e qualifica como intolerável má educação chamar intolerantes aos intolerantes. é a tolerancia que diz que aqueles que ela 'tolera' devem contentar-se por terem o direito de existir -- era o que faltava se quisessem ter direito a outros direitos, muito menos a ser iguais. muito menos o direito de mandar aquela parte quem assim se lhes julga tão superior. porque isso sim, seria má educação -- claro. como tratar os patrões por tu, estão a ver?

novembro

Nunca sei se se deve escrever sobre mortos. Não tenho uma regra. Já escrevi e já não escrevi. Quando alguém morre, ou quando se aproxima o aniversário de uma morte, quem escreve sente o quase inelutável impulso de escrever “qualquer coisa”. Parece quase uma obrigação, um imperativo: tu que escreves tens que encontrar o que dizer. Tu, que escreves, tens de fazer sentido, texto, poema, oração, disto. “Dizer umas palavras”. É assim que se diz.

Em Portugal, não há muito o hábito de dizer palavras sobre os mortos, para os mortos, no momento deles. Há pessoas para isso, pessoas que muitas vezes nem os conheciam e falam de alegorias e metáforas e salvações e vidas eternas. Mas pergunto-me sempre porque nos resignamos a esse hábito, porque não temos a coragem de fazermos nós, os que perdemos os mortos, os que os amámos, o discurso fúnebre. Falar sobre mortos é falar sobre a morte. E falar sobre a morte dos outros é enfrentar a nossa própria morte, mesmo que de viés, de raspão. Não se sai sempre bem. Não nos saímos sempre bem desse confronto – aliás, dir-se-á que nos saímos sempre mal por uma muito simples razão: não há saída. Por essa e por outras razões, muitas vezes não gosto do que leio, escrito por outros, sobre mortos. Os mortos não estão. Não estão para ouvir, não estão para ler, para gostar ou não gostar. Não estão para dizer: vai passear. Não estão para dizer: tu, de quem eu nem sequer gostava, tu, que eu desprezava, tu, com quem eu não falava há anos, tu, que me traíste, agora queres falar de mim? Queres redimir-te dos teus pecados e dos teus maus sentimentos? Queres usar-me para tricotar grandiloquências e lamechices em jeito de reconciliação póstuma? Queres chorar a tua juventude perdida comigo como pretexto, esconjurar os teus terrores em mim, mostrar ao mundo que és uma pessoa de grandes sentimentos e grandes mágoas, romantizar-te numa suposta grande perda? Disponíveis para todas as efabulações e relatos, todos os elogios e panegíricos, todas as lágrimas fáceis, os mortos são o mais árduo dos temas. Difícil falar deles com dignidade. Ser justo com eles e com a nossa memória deles. Ser capaz de rodear os interditos e os aproveitamentos. Não se diz mal dos mortos, repete-se. Como se algo de terrível sucedesse se fossemos apanhados a dizer, ou mesmo a pensar, algo menos fabuloso. Mas os mortos não são heróis – são mortos. Estar morto não é uma condecoração, uma entronização. A morte é. Afirma-se, inintegrável, irredimível, sem justificações. “Morte estúpida”, lê-se tantas vezes. Há mortes inteligentes? “Morte inesperada” – está bem, se calhar há mortes esperadas, se calhar há até mortes desejadas, até pelas melhores razões. Mas, por mais que a anunciemos, a morte deixa de ser uma surpresa? Dizem-nos: X morreu. Vamos ao velório, ao enterro, abraçamos amigos e família, choramos. Mas não cremos. É uma coisa demasiado esotérica, a morte: uma pessoa que existe deixar de existir, como? Pensamos nela como alguém que há. Guardamos-lhe o nome, o tom de voz, a forma como fazia saltar a franja, como segurava os cigarros. Coisas que nem sabíamos que sabíamos. Sentimentos que nem sabíamos que sentíamos. Se não virmos os mortos, se não lhes tocarmos, se olharmos para outro lado quando alguém lhes levanta o sudário, podemos fazer de conta que foram para outro país, outra cidade. Que nunca voltaram da Patagónia. Podemos escrever textos bonitinhos sobre eles e derramar lágrimas bonitinhas por eles e viver como se eles não se tivessem volatilizado. Podemos comemorá-los em datas certas. Podemos até, talvez, fazer piadas com eles, contar as suas anedotas. E esquecê-los, pouco a pouco. Porque é isso a memória: esquecer aquilo que não nos permite continuar. Viver. (publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 25 de novembro)

dulce salzedas: reminder

(texto de dulce salzedas, jornalista da sic) Hoje é o dia mundial de luta contra a sida. Mais um, depois de muitos outros, e antes de outros tantos. O primeiro dia em que dei por mim a preocupar-me com esta maldita doença, vai longe. Julgo que foi entre 1989 e 1990. Não recordo qual era a revista. Mas o nome não é importante. Tinha umas duas páginas sobre a nova doença. E o título era qualquer coisa como "Vai matar milhares". Quase vinte anos depois o hiv não matou milhares, mas milhões. Em Portugal é a principal causa de morte na faixa etária dos 30 aos 40 anos.

Voltando às minhas lembranças. Voltei a preocupar-me 3 anos depois. Na SIC, mandaram-me a Paris acompanhar o primeiro-ministro, Cavaco Silva, ao célebre, mas já esquecido, "Sommet de Paris". Um encontro europeu, de governantes europeus, que tinha como objectivo discutir as formas  de travar o avanço da epidemia no velho continente. Não vale a pena dizer que não deu em nada. Olhe-se para os números que anualmente a ONU-SIDA divulga. Mas o que valeu a pena, para mim, foi uma conversa que tive a felicidade de ter com um senhor que poucos conhecem - e a  quem eu tive o privilégio de ser apresentada por Odete Ferreira. Chama-se Luc Montagnier e foi o primeiro a descobrir que a doença que andava a matar gente pelo mundo fora era provocada por um vírus, o HIV. Dizia então Luc Montagnier que seria difícil encontrar medicamentos que travassem a doença e sobretudo encontrar uma vacina para o vírus. Segundo ele, aquele micro-organismo iria tornar-se um dos grandes inimigos da humanidade. Terá sido essa conversa a responsável pelo meu interesse pelo assunto? Não sei. O que sei é que quer profissionalmente, quer pessoalmente não mais deixei de preocupar-me. Fiz dezenas e dezenas de reportagens. Vi o sofrimento que a sida provoca, a angústia e o medo de quem está infectado e tem medo de o dizer e o esforço dos que tudo fazem fazem para acabar com o flagelo e diminuir a dor de tanta gente. Falei com doentes, com médicos, enfermeiros, psicólogos. Com gente que diariamente lida com o raio desta doença que mata pessoas, mata pais e mães a milhões de crianças. Tira a vida a outros tantos milhões de bébes, dizima continentes e faz alterar as geografias do mundo. Põe os senhores da guerra a pensar nela:  está na origem de muitas das cimeiras intercontinentais  e até  obriga a muito diligente CIA a fazer relatórios sobre o alastramento da doença. Por cá,  poucos se preocupam com isto. A sida está lá longe, em África, na Ásia e um pouquinho na América Latina. Nós, os europeus e americanos brancos, continuamos convencidos que somos imunes. Convenceram-nos que não fazendo parte de nenhum "grupo de risco" não seríamos "apanhados". E convenceram-nos de tal maneira que agora não há forma nem ninguém capaz de nos meter na cabeça que os grupos de risco já era. Há é comportamentos de risco, como por exemplo o não usar preservativo. E esse comportamento temos quase todos. Não chegou já a altura de o mudar?    

do autismo tradicional à greve geral

A Confederação de Comércio de Portugal ameaçou, esta semana, juntar-se à greve geral convocada pela CGTP. O motivo, explica José António Silva, o respectivo presidente, é a previsão da perda de 50 mil empregos no sector, previsão essa que associa ao anteprojecto de "licenciamento de grandes superfícies" apresentado pelo Governo. Diz Silva, num afã de reuniões e audiências - pediu para falar com o Presidente, com o primeiro-ministro e com os partidos da oposição -, que "desapareceram 250 mil empregos no comércio nos últimos três anos e agora a destruição do emprego será ainda maior". Parece que as centrais sindicais não acharam muita piada às declarações de solidariedade dos comerciantes, vendo com "grande reserva" a "adesão" dos "patrões" à luta dos "trabalhadores". Mas, pensando bem, a coisa faz todo o sentido.

Há um encontro de visões do mundo nestas dicotomias primárias: os lojistas "coitadinhos" contra os lojistas "tubarões", os "trabalhadores" contra "o patronato". Como há um encontro de visões no que respeita à negação da realidade e à defesa do proteccionismo. Não se trata, é claro (ou, não sendo claro, assim se clarifica), de defender o capitalismo selvagem ou a total ausência de regras. Mas de reconhecer que os tempos mudaram, a começar pelos ritmos de vida, pelos horários, e pelas expectativas criadas por novas fórmulas comerciais, e que quem não evolui morre. Haver lojistas e empregados de lojas que acham que as lojas fecham por causa dos "outros", dos "maus" que abrem todos os dias e a todas as horas e vendem mais barato, e que a melhor forma de sobreviverem é fazer parar o tempo e impor aos seus clientes horários e lógicas de funcionamento ao avesso do que a estes convém - sem no entanto permitir que outros lhes dêem aquilo de que carecem - é normal. Já todos ouvimos comerciantes a dizer que não abrem ao fim-de-semana nem à hora do almoço porque "se as pessoas quiserem comprar, que venham às 'horas normais'". Mas que a própria associação do sector alinhe nesse discurso - como se as tão odiadas "grandes superfícies" não fossem também comércio - e ameace com "greve geral" é bem a medida do esplendoroso autismo daquilo a que se costuma dar o nome de "comércio tradicional". Um comércio cuja essencial tradição é a do imobilismo, um comércio que não viaja, não conhece nem se informa, um comércio que não pensa, um comércio que não oferece, exige. Um comércio, em suma, que não se sabe vender. E que, na sua esquizofrenia, vai ao ponto de ameaçar greve - como se o seu problema não fosse a greve que os clientes há muito lhe declararam.

deus contra deus

(texto de anselmo borges, hoje no dn) 1. Embora ao princípio tenha sido ignorada, trata-se de uma obra decisivamente importante: O Mundo como Vontade e Representação, de A. Schopenhauer. "O mundo é a minha representação", assim começa, pois é sempre com a nossa estrutura humana que o captamos. Mas o Homem não se reduz ao conhecimento. Antes de pensarmos, vivemos: respiramos, comemos, bebemos, movimentamo-nos. Somos um corpo vivo que quer viver. No mais fundo de nós, somos vontade de viver, e a mais forte expressão dessa vontade está no sexo e no instinto de reprodução.

Toda a vida orgânica é manifestação dessa vontade. É aterrador o que se passa na selva - também na "selva humana". Mais: a vontade está na raiz das manifestações da natureza inorgânica - pense-se na potência que põe os astros em movimento, na energia nuclear, na força de atracção e repulsa dos elementos, nas tempestades, nos terramotos, nos vulcões. O universo, aparentemente sereno, é um reboliço infindo, gigantesco. Foi também aqui que Nietzsche veio beber a sua teorização da vontade de poder e do super-homem. O que é a moral vulgar senão a manifestação do ressentimento dos fracos contra os fortes? 2. Já não se repara nisso, mas o cristianismo é realmente um paradoxo e um escândalo. Jesus disse que veio para que tivéssemos "a vida e a vida em abundância". Ele é a "ressurreição e a vida". Mas a vida que ele traz não é a vida para os mais fortes. Os preferidos são os fracos, os doentes, os aleijados, os pobres, os coxos, os cegos, os leprosos, as prostitutas, os pecadores públicos, os marginalizados pela sociedade, os excluídos pela religião. E são precisamente os poderosos que em coligação o excluem do mundo, condenando-o à morte e morte de cruz - a morte dos escravos. Portanto, Jesus aparece sem poder. Ele é Deus derrotado pelos poderosos, coisa nunca vista nem ouvida. São Paulo percebeu o escândalo, dizendo que só pregava Cristo, e Cristo crucificado. Aos Coríntios escreveu: "Enquanto os judeus pedem sinais e os gregos andam em busca da sabedoria, nós pregamos um Messias crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gentios." E foi ao Areópago, em Atenas, pregar "o Deus desconhecido", que ressuscitou Jesus. Agora, "quem quiser ganhar a vida deve perdê-la, quem a perder por amor ganha-a". É tal o paradoxo que, aqui, se agita uma pergunta tentadora: Porque não criou Deus um mundo mais amoroso e menos violento? Não foi o Filho "vítima" do Pai criador, como se Deus lutasse com Deus? 3. Os seres humanos debatem-se com três impulsos - manifestações fundamentais da vida como potência - de cuja gestão depende uma vida humana boa para todos: o prazer, o ter e o poder. Alguns dos primeiros cristãos resolveram a questão de modo radical, entregando o poder a César, renunciando ao casamento, dando os bens aos pobres. A sua fidelidade era facilitada pela convicção da chegada iminente do Reino de Deus, com a segunda vinda de Jesus. Se o Reino de Deus, aquele Reino onde Deus reina e onde não haverá escassez nem exploração nem dor nem morte e se realizarão todas as esperanças, está para chegar, César que fique com o poder, efémero, a questão do casamento não se põe, já não se trabalha e tudo é comum. Depois, foi o que se sabe. Até o Papa se declarou "sumo pontífice", sucedendo ao imperador, os bispos ocuparam palácios, os cristãos mataram e mataram-se por causa do prazer, do ter e do poder. Jesus ainda não voltou, e a vida sem algum prazer não tem interesse; para haver futuro, é preciso continuar a gerar; a economia tem de funcionar, e não há comunidades humanas sem um mínimo de exercício do poder. Assim, o desafio essencial para os cristãos é a gestão do prazer, do ter e do poder, no horizonte da mensagem de Jesus com as bem-aventuranças: "Felizes os pobres em espírito, os mansos, os misericordiosos, os que choram, os puros de coração, os que se batem pela justiça..." Mas já Nietzsche se queixava: "Cristãos? Só houve um, e morreu na cruz." Depois, veio a Igreja e "o Disangelho".

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