Declaração inicial: estou com medo de escrever não vá acontecer-me o mesmo que na estreia, quando desarrumei a casa toda. Ganhando coragem cá vai... Também eu, à semelhança do João Pinto e Castro, fiquei com ar de parva (bem, eu fiquei, ele não sei, mas percebem a ideia, não percebem?) a olhar para as gordas de uma das notícias do Público de ontem, pensei logo em inflações, revisões em alta e esse tipo de palavreado. "Queres ver que esta resolveu dedicar-se a esmiuçar o noticiário económico? Para o que lhe havia de dar", estarão vossas exas a pensar. Desenganem-se... a notícia era sobre a morte de Suharto. "Violações aos direitos humanos e milhares de mortos" lia-se no jornal e o João escreve, e muito bem, "("Milhares de mortos" é, definitivamente, o eufemismo do dia.)". Ora, por falar em mortes directamente ligadas a Suharto, veja-se este gráfico demográfico de Timor e aprecie-se a clareza com que mostra os efeitos de certos acontecimentos políticos no país. Descobri-o num comentário a um post de PPM, no blogue atlântico, o homem que se costuma encanitar todo com "mas" alheios (isto é só um entre inúmeros exemplos) e que, contudo, termina o referido post com esta singela frase "Claro que o ditador Suharto era abominável, mas convém recordar que não foi o único.".
cabe talvez explicar que, apesar de só dois dos novos marujos terem aparecido no convés (o paulo pinto e a maria joão pires -- não, não toca piano, mas fala francês), o resto do womenage -- a inês meneses e o josé pedro barreto -- também cá está. opámo-los todos. também opámos o blogoexisto (joão pinto e castro) e o metablog (joão galamba). os nossos colaboradores habituais, de ana matos pires a filipe moura, passando pelo santíssimo carmelito (pedro vieira, o irmão lúcia) também passam a ser donos disto. estamos muito contentes e tal, apesar de ainda profundamente inconsoláveis com a perda da nossa saudosa jaddie e um pouco temerosos de que o joe berardo comece a dar entrevistas sobre nós. enfim, são riscos que se correm.
Confesso que ao entrar no editor de texto deste post não fazia a mínima ideia do que iria escrever. Afinal, o primeiro post deveria ser algo de bem pensado e reflectido. Se, numa entrevista, o primeiro minuto define o perfil de um candidato, porque é que o primeiro post não há-de definir a imagem de um blogger? Impunha-se, pois, um post inaugural conveniente, profundo e ponderado, cheio de humildes modéstias e de agradecimentos. Mas o apelo da raça falou mais alto. Então há gente nova neste blog, que parte da mesma linha do que eu, e um tipo fica de braços cruzados a vê-los passar? "Eu é que não sou parvo", diz o outdoor. Um pouco como acontece de cada vez que cada um de nós entra numa rotunda ou passa num cruzamento. Mesmo que não estejamos com pressa, o apelo para passar primeiro e não deixar atravessar o tipo que está à espera de pisca ligado soa sempre mais alto. Não há nada a fazer. De pouco serve o ar embaraçado ao ouvir os inquéritos rodoviários que revelam, entre outros elementos, que a esmagadora maioria dos automobilistas não gosta de ser ultrapassado. Será talvez por isso que andamos todos na faixa do meio. Portanto, não resisti ao apelo de passar à frente. Acelerar quando não se pode, dizer coisas quando não se sabe o quê, mandar bitaites quando se ignora, fingir profundidade quando se sabe pela rama, mostrar conhecimento quando se sofre de nesciência. Numa palavra, fazer um brilharete. Lembro-me de um colega de curso que fazia muito disto. Mostrava o que sabia e, quantas vezes, o que não sabia. Até ao dia em que um docente, ratazana velha, lhe fez perguntas sobre a matéria X e ele respondeu com o assunto Y. À terceira, ouviu o que não esperava, mas merecia: "não, não, o que lhe estou a perguntar não é isso, é aquela matéria que está 50 páginas mais à frente" (e onde, evidentemente, não tinha chegado). É o que estou a fazer neste momento, um brilharete. E porque não? "Também muitos doutores falam bem, fazem flores, mas não dizem nada, nada ao discursar: «meus senhores...»".
a qualquer momento, deverão entrar pelo 5 dias os novos reforços. ainda não fiz as contas, mas, definitivamente, deixámos de ser os cinco (adeus, enid blyton) e passámos a ser bués. muito bem vindas e bem vindos, senhorias. é entrar, é entrar.
Tenho uma mania. Melhor dito: tenho muitas manias, mas hoje apetece-me falar de uma delas. É a mania de aproveitar. Era assim que se chamava dantes – agora chama-se reciclar. Na verdade, acho que odeio a ideia de mandar coisas fora. Freud explicaria isto com uma teoria geral da retenção e do medo genérico de perder e talvez até, mais filosoficamente, com a recusa da morte. Mas isso agora não interessa nada: o que quero é falar da mania em termos práticos, não explorar os seus fundamentos. No outro dia, abri uma revista de um semanário qualquer e vi uma reportagem sobre gente como eu. Com fotografias e grande destaque. Como se fosse uma coisa extraordinária. Fiquei parva. Juro: fizeram umas seis ou sete páginas sobre pessoas que apanham móveis do lixo ou recuperam as heranças dos avós ou – como já fiz– tanto chateiam a dona de uma loja que ela oferece mesmo aquele puf redondo anos 70 que aliás não queria para nada e tinha para ali malbaratado e desprezado. Havia na reportagem um tipo que tinha ficado com os banquinhos de um cinema demolido (também eu ficaria, se os apanhasse, eram lindos) e outro que apanhara não sei o quê – acho que umas cadeiras – de um contentor de obras. Coisas que, na minha visão das coisas, são banais e mais, óbvias. Aliás, nunca passo por um contentor daqueles que põem à porta dos prédios em demolição/reabilitação sem espreitar lá para dentro e já fiquei a chorar, por várias vezes, um sofá anos 50 ou uma cadeira de escritório metálica anos 70 vistas, do táxi, à porta de um qualquer prédio.
Tenho para mim que a única razão pela qual as lojas “de decoração” se safam tão bem é uma espécie de saloiice apressada das gentes que suspiram por coisas “novas” (mesmo que a “imitar antigo”). Porém, às excepção das camas e sofás – por algum motivo exdrúxulo (talvez o facto de as pessoas antigas serem mais pequerruchas?) as camas com umas décadas são miseravelmente acanhadas e os sofás, na maioria, hiper desconfortáveis – quase tudo o que é necessário para uma casa decente está disponível em versão salvados, acidental ou organizada (como nos armazém de pseudo-monos tipo Emaús). Mesas, por exemplo. Há-as redondas, quadradas, rectangulares, ovais e por aí fora. Quase todas as fórmulas já foram tentadas, nesta matéria. Logo, devem andar por aí. Para quê procurar no IKEA ou na AREA ou qualquer outro entreposto desses, se pelo mesmo preço ou até muito menos se arranja um real mcCoy dos anos 30, 40, 50, 60 ou 70, de madeira a sério e tudo, com a vantagem de parecer único (aliás, alguns até são – cópias de móveis “da moda” de há décadas feitas por um carpinteiro português por encomenda de uma família burguesa sem posses para adquirir o original) e de nos fazer sentir que contribuímos para combater o desperdício? Quem é que quer uma casa de telenovela, toda comprada no mesmo sítio e ao mesmo tempo, sem fífias nem alma? Quem é que quer viver num cenário morangos com açúcar, céus? As casas são a melhor radiografia da alma que conheço – mais fiéis ainda que os sapatos e um bocadinho menos evidentes que os livros que se têm na estante e os discos que se ouvem (ou que nunca se ouvem). Pode-se fazer análise psicológica -- e social e económica, claro, mas essa é por demais óbvia -- instantânea ao entrar numa sala. Como disse, creio, Sophia de Mello Breyner, “a minha casa é a minha alma”. E ai de quem a comprou, à alma, num pronto-a-exibir sem mossas nem história, sem espessura nem a ilusão, pelo menos a ilusão, de ser inimitável e irrepetível. (publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 20 de janeiro)
2007 foi o ano europeu da igualdade. Em várias cerimónias, o Governo defendeu com denodo e paixão a igualdade plena para todos e o fim das discriminações. Coisa que, diga-se de passagem, a Constituição já estabelece no seu artigo 13.º, ao fazer o rol das "grandes" discriminações interditas, incluindo a discriminação em função da orientação sexual. Esta, adicionada na revisão constitucional de 2004 ao rol do artigo 13.º, é a única das "grandes" que o ordenamento jurídico continua a promover - em virtude de normas anteriores a 2004. É o caso do impedimento do casamento civil de pessoas do mesmo sexo e da adopção por unidos de facto do mesmo sexo. Aliás, a adequação de uma dessas normas, a do casamento, à lei fundamental está a ser apreciada no Tribunal Constitucional, que já levou à eliminação do crime de "actos homossexuais com adolescentes". Mas ainda o 2007 da igualdade não arrefecera e um membro do Governo garantia, tranquilamente, a discriminação em função da orientação sexual no novo regime das famílias de acolhimento de crianças em risco, publicado a 8 de Janeiro.
Para a secretária de Estado Idália Moniz, "é incontroverso" que os unidos de facto do mesmo sexo não se podem candidatar. Nada havendo no decreto que mencione essa exclusão (fala em pessoas singulares, "casais" e parentes em economia comum), Moniz remete para as leis de protecção de menores (de 1999) e das uniões de facto (de 2001). Sucede que a primeira fala de "casados e de unidos de facto há mais de dois anos" e a segunda tem apenas uma reserva, a de excluir da adopção os unidos de facto do mesmo sexo, não referindo o acolhimento. Não sendo adopção e acolhimento a mesma coisa (aliás, quem acolhe não pode adoptar), difícil perceber outro sentido para esta "leitura" governamental que não o objectivo deliberado de discriminar, aderindo ao mais básico preconceito. Nem de propósito, é mais ou menos assim que em acórdão desta semana o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos classifica o comportamento da França, condenada, com o voto do juiz português, por discriminar uma homossexual na candidatura à adopção. "Os Estados que não queiram amanhã ser condenados têm de olhar de muito perto para esta decisão", disse ao DN - e aos bons entendedores - o juiz Cabral Barreto. Ao Governo português bastaria no entanto olhar de perto para os empolgados discursos que fez em 2007. Ou praticar o sentido das palavras do jurista Rui Pereira, agora ministro da Administração Interna, que em 2006, ao defender as alterações ao Código Penal que incluem expressamente os casais do mesmo sexo na tipificação do crime de violência doméstica, disse numa frase tudo o que há a dizer: "As causas da igualdade são de nós todos." Há quem ainda não tenha percebido. (publicado hoje no dn)
(texto de Filipe Moura, repito, TEXTO DE FILIPE MOURA)Nasceu há cem anos o maior cientista da extinta União Soviética e um dos maiores físicos do século XX. As suas contribuições são valiosíssimas, nomeadamente a teoria do hélio líquido e a superfluidez (que lhe valeram o prémio Nobel de Física em 1962), as transições de fase, mas também em praticamente todos os outros domínios da física teórica.
Para além do Landau cientista, merece reconhecimento o Landau formador. Em conjunto com o seu discípulo Evgueni Lifshitz escreveu o famoso Curso de Física Teórica, que ajudou e ajuda na formação de gerações de físicos (as actualizações após a sua morte foram sendo feitas por outros discípulos: V. Bérestetski e, principalmente, L. Pitayevski). Há outros “cursos sobre tudo”, como o de Arnold Sommerfeld (também muito bom, mas com mais de um século) e as famosas The Feynman Lectures on Physics, muito mais elementares e com um espírito completamente diferente. O Curso de Física Teórica de Landau e Lifshitz representava o mínimo que teria que saber alguém que aspirasse a trabalhar no grupo de Landau. Ainda hoje muitos dos tópicos lá explicados só se estudam ao nível de doutoramento! Exceptuando talvez o volume 4, de
Electrodinâmica Quântica (que mal foi escrito por Landau), que hoje, sem estar errado (de todo), não representa a abordagem mais moderna ao assunto (podendo-se considerar ultrapassado por textos mais modernos de Teoria Quântica de Campo), o tempo não passa pelos outros volumes, que ainda hoje são referência utilíssima para qualquer físico teórico. Os volumes 1 (Mecânica Clássica) e 3 (Mecânica Quântica) são absolutamente
indispensáveis, se não mesmo os melhores livros para um estudante de física aprender estes assuntos.
Quando entrei para o Instituto Superior Técnico ainda se encontravam nas livrarias os três primeiros volumes do curso, traduzidos para português e editados pela Editora Mir, de Moscovo. A União Soviética acabara há um ano, e pouco depois acabaria a Mir. Com os cérebros a escaparem todos, não houve tempo para acabar a tradução do curso para português. Havia ainda assim alguns dos volumes seguintes (o 5, o primeiro de Física Estatística, e o 8, Electrodinâmica dos Meios Contínuos) nas livrarias, nomeadamente na loja da antiga Central Distribuidora Livreira (que distribuía também as Edições Avante!), em Lisboa, na Avenida Santos Dumont. Comprei-os, e desde então o meu principal objectivo na vida passou a ser comprar todos os outros volumes, em francês, na edição da Mir. Tinha a esperança de que pudessem existir, à minha espera, esquecidos nalguma livraria. Cada vez que eu ia a uma cidade diferente, ia às principais livrarias à procura do Landau. A única vez que entrei na bela Lello na vida foi... à procura do Landau. E assim corri outras livrarias mais académicas de Portugal.
A salvação poderia vir do estrangeiro. Um grupo de amigos foi à Rússia, a São Petersburgo. Pedi-lhes para me arranjarem o que pudessem do Landau. A única coisa que me conseguiram foi um exemplar, que eu conservo com carinho, da Electrodinâmica dos Meios Contínuos... em russo! Dá para entender as fórmulas – a linguagem matemática é universal!
Dado que os livros eram em francês (as minhas grandes motivações para saber francês eram poder ouvir o Jacques Brel e ler os livros do Landau), experimentei a hoje extinta livraria do Instituto Franco-Português em Lisboa. Sem sucesso. Mas ao menos consegui a morada de uma livraria distribuidora em Paris (o equivalente à CDL portuguesa) que os poderia ter. Não sabia nada de Paris, e ignorava completamente o que fosse um arrondissement, mas guardei essa morada. Assim que soube que um outro colega ia a Paris, pedi-lhe que fosse à tal livraria procurar os “Landaus”. Sem sucesso mais uma vez.
Depois de uma procura tão demorada (cerca de dois anos), sempre sem encontrar a mínima pista dos livros que eu tanto desejava, eles “caíram-me ao colo”, vindos do céu (ou não sei de onde). Um dia muito tranquilo, vinha eu a passar à frente do Pavilhão Central do Técnico, e estava lá um vendedor ambulante com uma carrinha cheia de caixotes de livros da Mir, que expunha numa bancada improvisada. Entre os livros expostos estavam os “meus Landaus”; escusado será dizer que comprei os que me faltavam imediatamente. O vendedor era um ex-estudante da ex-União Soviética que andava a dar a volta às faculdades de ciências e engenharia do sul da Europa, a vender o stock que restava dos livros da Mir em francês, espanhol e português. Ainda hoje estou para perceber como é que aquilo sucedeu. Foi um autêntico milagre. Por ter conseguido o objectivo que tanto queria, esse dia de Janeiro de 1996 em que o mascate (não faço ideia de qual era a sua nacionalidade) apareceu no Técnico foi sem dúvida um dos mais felizes da minha vida.
Os livros da Mir eram excelentes e baratíssimos; para além disso, tinham sido fabricados na extinta União Soviética. O papel onde eram impressos era soviético; o pó que largavam, acumulado nos caixotes onde estiveram arrumados e esquecidos sabe-se lá por quantos anos, era soviético; a encadernação, excelente, era soviética; a contracapa, com um resumo do livro e das biografias dos autores, era soviética. No caso do curso de Física Teórica de Landau e Lifshitz, não faltava uma referência ao Prémio Lenine, atribuído àquele mesmo curso em 1962.
Quando comecei o meu doutoramento, nos EUA, tive de levar comigo alguns volumes do curso, que nunca tinha estudado durante a licenciatura, e escolhi cadeiras (nomeadamente de física estatística e física da matéria condensada) que me permitiam estudar o seu conteúdo. Tinha – e tenho – a opinião que um físico teórico deve, se não dominar perfeitamente, pelo menos ter tomado um contacto sério, ao nível de investigação, com todos os volumes do curso. Levei assim alguns dos meus “Landaus”, em francês e português, para espalhar e difundir por Nova Iorque o cheiro do seu pó soviético (não deveriam faltar certos candidatos a Dr. Estranhoamor que levariam a sério isto que eu estou a dizer como uma ameaça de conspiração qualquer). Qual não foi a minha surpresa ao verificar que em muitas das cadeiras de doutoramento os volumes correspondentes do Curso de Física Teórica de Landau e Lifshitz, o melhor que se tinha feito em física na extinta União Soviética, eram os livros de texto recomendados. A vantagem das universidades americanas, e no fundo a vantagem dos EUA enquanto país, resulta daqui: saber sempre reconhecer o que é bom. Os dez volumes do “Curso de Física Teórica”, aliás, “Course of Theoretical Physics”, existiam em várias cópias em várias bibliotecas de diferentes departamentos da Universidade, e podiam comprar-se em qualquer livraria como a Amazon ou Barnes and Noble. Publicados em inglês por uma editora capitalista. Quatro ou cinco vezes mais caros. E sem nenhuma referência ao Prémio Lenine.