Ter bebés. Fazer bebés. Dar bebés ao país. A natalidade transformou-se numa obsessão de um certo discurso político e uma preocupação dos economistas e dos responsáveis da segurança social. Sem bebés, não há gente para fazer andar o país para a frente, para activar a população e manter o equilíbrio entre gerações. Sem bebés, não haverá como pagar reformas, subsídios de desemprego, abonos de família e até prestações de apoio à natalidade. Sem bebés estamos feitos.
Daí que seja preciso encontrar razões e soluções. E é nessa altura que se fala, impreterivelmente, da “saída das mulheres de casa”. E da forma como isso terá revolucionado “tudo”. Esta forma de ver as coisas é muito curiosa. À luz desta noção, conclui-se que as mulheres, assim em geral, só devem ter começado a trabalhar “fora de casa” nos anos 70 do século XX. Que estavam sempre todas “em casa”, ocupadas com a comida e a costura e os filhos e quanto muito uns bolos ou crochés para fora, enquanto os homens trabalhavam, “a sério”, para o chamado “agregado”. Muito giro, isto: é lá possível que houvesse ceifeiras e mondadeiras e costureiras e criadas e operárias e padeiras (e jamais em Aljubarrota, e em 1385) antes do século XX. Para não falar daquela que dizem -- a bem dizer nunca se percebeu porquê -- “a mais velha profissão do mundo”, da qual aliás nem convém falar (muito menos a propósito de bebés, homessa). E, sobretudo, é lá possível que em zonas onde as mulheres trabalham de sol a sol, como em África, haja muitos bebés, como há também (relativamente a outros países ocidentais) e por motivos muito diferentes, nos países encandinavos, onde a taxa de ocupação profissional das mulheres é muito elevada. Poderá então ser que o défice de natalidade em certos países não tenha relação directa com o facto das mulheres trabalharem “fora de casa”. Mas para quê encontrar outros motivos, se é tão fácil e conveniente atribuir tudo à malandragem das mulheres, que “saíram de casa”, arranjaram uns trocos para se sustentar, pegaram o freio nos dentes com esta coisa da pílula e deram em decidir se querem ou não, se lhes dá jeito ou não, se lhes apetece ou não. Se estão para enjoos matinais, costas derreadas, pernas inchadas, varizes, umas boas horas de dores ou uma cirurgia de barriga aberta, três ou quatro meses sem dormir, estrias, mamilos gretados, uma overdose de fraldas e biberões e papas lácteas, mais pediatras e caça à creche e tudo o que se segue, sempre com a culpa constante de não serem boas mães que chegue. Ou se, simplesmente, não estão para isso. Porque lhes falta coragem, porque lhes falta vocação para o sacrifício. Porque lhes falta quem perceba o quão extraordinária é a exigência da tarefa, a enormidade da missão. Enfim: as mulheres deram em ser como os homens. Em fazer o que lhes apetece, em assumir o que lhes convém. Tornaram-se uma coisa terrível, que se ouviu no outro dia, num Prós e Contras sobre esta questão, como um dos busílis: “egoístas”. Felizmente que há gente boa e altruísta para lhes mostrar o bom caminho. Gente generosa que vive para os outros e que não hesitaria em fazer bebés sem parar e em ficar em casa a tomar conta deles – se não tivesse melhor para fazer pelo país. Gente como os nossos natalistas ilustres, do líder do PP ao presidente da República, passando por todos os deputados-homens da nação que já gozaram uma licença de paternidade e que põem a família à frente da carreira. E, sobretudo, por aqueles que, nas suas contas de somar, subtrair, multiplicar e dividir bebés, nunca contam com os que, em tantas zonas sobrepopuladas do mundo, sonham com uma vida melhor num país como este. Esses e os bebés deles nunca entram nas contas -- para nada. Nem para nos salvar. (texto publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 30 de dezembro)
Devia estar a falar de presentes, de comunhão, de amor, de presépios e musgo e filhós e azevias e bolos-rei (a propósito, porque é que é quase impossível, senão realmente impossível, encontrar um bolo rei decente?), mas apetece-me é escrever sobre a entrada em vigor, no primeiro dia do ano, da nova lei do tabaco. E precisamente a propósito de uma das expressões mais repetidas nesta época: a boa vontade. Durante a discussão da lei, falou-se muito da alegada selvajaria fundamentalista da proibição de fumar na generalidade dos espaços públicos fechados (na verdade, a proibição não é total, já que cafés, restaurantes e bares podem escolher o regime e manter-se para fumadores caso tenham até 100 metros quadrados, desde que instalem um sistema de extracção de fumos eficiente, seja lá isso o que for, e, caso tenham uma superfície maior, reservar até 30% da área para fumadores, sendo necessário separá-la fisicamente). Argumentou-se que esse tipo de atitude é anti-democrática e iliberal, e que seria muito melhor fazer acções de sensibilização e levar as coisas “a bem”.
Sabe-se o quão eficaz é confiar na virtualidade do espírito cívico, mas podia ainda assim esperar-se que, decorrendo entre a aprovação da lei e a sua entrada em vigor um período de vários meses, as pessoas fossem demonstrando a sua capacidade de lidar responsavelmente com a questão, numa espécie de chapada de luva branca aos terríveis ditadores anti-fumo. Mas assiste-se ao espectáculo contrário. A generalidade dos estabelecimentos não levou a cabo qualquer modificação no seu espaço com vista ao cumprimento da lei. Diz o representante do sector da restauração e similares que tal se deve ao facto de a interdição de fumar ser a escolha maioritária. Mas fala-se com este ou aquele gerente e percebe-se que o que se passa é que nem pensaram no assunto – e estão a ver como páram as modas, tipo, se a lei é para valer ou, como tantas leis anteriores, sobre este e outros assuntos, é para ignorar. Quanto aos fumadores, idem: ninguém diria que vem aí uma lei anti-tabaco. É vê-los puxar do cigarro a toda a hora, como sempre fizeram, e a largar piadas sarcásticas (na melhor das hipóteses) se alguém lhes faz um reparo. Poder-se-á dizer que estão em “negação”. Na verdade, estão a ser iguais a si próprios: viciados que não conseguem controlar-se. Nunca fumei na vida, mas tendo muitos amigos fumadores, sei o quanto a frase que acabei de escrever os enerva. Acham que estou a ser, no mínimo, “paternalista” e, no máximo, “discriminatória” (atitudes, aliás, que costumam andar juntas). Na verdade, estou a basear-me no que se sabe, cientificamente, sobre o tabaco: é uma substância altamente aditiva -- ao nível da tão diabolizada e proibidíssima heroína -- e os seus consumidores são aquilo a que se dá o nome de toxicodependentes. Ora não se pode esperar deles um comportamento racional no que respeita à substância ou substâncias de que dependem para se sentirem bem. É a chamada contradição em termos. De modo que boa vontade, nesta matéria, só a dos outros, os não toxicodependentes, que têm convivido com a dependência dos fumadores com uma paciência e uma resignação que só podem ser explicadas por ausência de alternativas (e portanto pelo totalitarismo dos fumadores) ou por amor – o amor a quem fuma. Boa vontade, portanto, ou a vontade de conviver e de não ser desagradável, mesmo que tal implique dificuldade em respirar, olhos inflamados e um pivete indescritível no cabelo e na roupa (para não falar do resto, e o resto é bem pior). Era altura de os fumadores agradecerem tanta gentileza e pensarem em retribuí-la. Tipo presente de Natal – de muitos, muitos Natais atrasados. Vá lá, façam-nos uma surpresa. (publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 17 de dezembro)
(texto de ana matos pires) Andei com as leituras atrasadas e só ontem peguei com olhos de ler na Única de sábado passado. Ao ler o texto "O mundo ao contrário" não consegui deixar de ficar com sentimentos ambivalentes e, há que assumir com frontalidade, piurça. E faxavor de não virem com a treta do politicamente correcto que já chateia, ok? De modo algum questiono a importância das instituições do tipo do Banco Alimentar (BA) contra a Fome e muito menos, porque não tenho que o fazer, a escolha de Isabel Jonet como Figura Nacional de 2007 no entender do Jornal Expresso, que fique claro, mas, como dizia o outro, ele há coisas que "não havia necessidade". A determinada altura leio «No seu dicionário, caridade vale mais que solidariedade. "Caridade é amor, solidariedade é serviço.". É também a sua "opção de vida", para "mudar o mundo".». Pois. Mas lá que me lembrei do Barata Moura, lembrei: Vamos brincar à caridadezinha Festa, canasta e boa comidinha Vamos brincar à caridadezinha.
A senhora de não sei quem Que é de todos e de mais alguém Passa a tarde descansada Mastigando a torrada Com muita pena do pobre, Coitada. Vamos brincar à caridadezinha Festa, canasta e boa comidinha Vamos brincar à caridadezinha. Neste mundo de instituição Cataloga-se até o coração Paga botas e merenda Rouba muito mas dá prenda E ao peito terá Uma comenda. Vamos brincar à caridadezinha Festa, canasta e boa comidinha Vamos brincar à caridadezinha. O pobre no seu penar Habitua-se a rastejar E no campo ou na cidade Faz da sua infelicidade Algo para os desportistas Da caridade. Não vamos brincar à caridadezinha Festa, canasta e a falsa intençãozinha Não vamos brincar à caridadezinha. Um pouco mais para diante estava escrito «Aliás, por uma questão de "autonomia e respeitabilidade", no BA, político não entra». Pois outra vez… e um apontamento. Ao longo do texto foi referida uma outra instituição, a "Entreajuda, cujas ligações ao BA são apontadas - aliás, têm a mesma sede física, na Av. de Ceuta, Estação C.P.Alcântara-Terra, Armazém 1, 1300-125 LISBOA). Na mesma peça jornalística pode ler-se que, e cito de novo, «Rosário Águas é a cara da Entrajuda, uma associação sem fins lucrativos (…) Economista de profissão, Rosário é deputada do PSD por Vila Real (…)». Sorry? Então e a autonomia e a respeitabilidade? Não tenho nada contra nenhuma destas mulheres, volto a assinalar, só me parece haver por aqui alguma incongruência, ou pantomineiros são só os outros políticos? Ah, um outro mimo adorável era a caixa da página 34. Rezava assim "Mãe de cinco filhos, tem aquele dom das mães para aproveitar sobras. Sobras de comida, de comida, de coisas, de talentos». Ai que coisa mai linda, que ternurazinha, que enaltecimento do papel materno. Mães deste país, uni-vos, sobra que é sobra não passará. Um grande 2008 para todos.
you're walking and you don't always realize it, but you're always falling with each step you fall forward slightly and then catch yourself from falling over and over, you're falling and then catching yourself from falling and this is how you can be walking and falling at the same time (walking & falling, laurie anderson, big science. e bom 2008)