"As «escutas» já chegaram ao Luís Figo em manchete no Correio da Manhã. O ambiente está propício às mais desbragadas aventuras noticiosas, ao boato sob a forma de «notícia». A bagunça vai tão alta que Vasco Pulido Valente, no Público de hoje, já escreve que «não é legítimo, nem recomendável arriscar nessa querela (tentar remover Sócrates de cena) a própria integridade do regime.» Acompanha-o José Pacheco Pereira, ontem na Sábado: «ou se penaliza os jornalistas e o jornal por essa violação (do segredo de justiça) ou qualquer protesto é vão.» Em Portugal, uma parte da oposição ao Governo, ao PS e a José Sócrates abandonou definitivamente o território da política, onde se sente pouco à vontade porque deixaram de pensar. Age como o Hammas: atiram bombas para cima da população indefesa. Mas com uma diferença significativa: aqui, atiram as bombas de longe cientes da impunidade que a lei e a Justiça lhes oferece; lá, na Palestina, quem transporta a bomba também morre."
Qualquer profissional sabe os riscos que corre quando critica os membros da mesma profissão. Há sempre um conflito de interesses entre a sua consciência - ou seja, aquilo que acha que é verdade e que deve ser dito - e o interesse de não arranjar problemas com "a corporação". Quando em Abril de 2009, num painel de debate da TVI24, disse que considerava não haver jornalismo de investigação no caso Freeport, mas notícias plantadas sob a forma de "informações" alegadamente (sublinhe-se o alegadamente) extraídas de um processo em segredo de justiça, estava bem consciente desse conflito de interesses e do risco que as minhas declarações implicavam, apesar de outros opinadores - caso de Ferreira Fernandes, neste jornal, utilizando a feliz expressão "milho aos pombos" e sublinhando serem os pombos "animais estúpidos" - terem dito o mesmo antes e depois.
Na SIC, no Expresso e no Correio da Manhã, as minhas opiniões tiveram direito a peças noticiosas. O destaque das três, porém, não foi a existência de jornalistas que criticam o jornalismo que se faz; foi a minha identificação como "namorada de José Sócrates". Considerando intolerável quer a devassa da minha vida íntima quer a redução da minha pessoa a sucursal de outra, apresentei queixa dos autores das peças ao Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas e à instituição que legalmente tem a função de fiscalizar a deontologia da profissão, a Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas.
O CD (cujo parecer é de Julho de 2009 e, curiosamente, não foi noticiado) considerou "tecnicamente incorrecta e deontologicamente reprovável o enfoque e identificação da jornalista como sendo "namorada de" nos títulos e destaques das notícias, em análise, elaboradas pela SIC, pelo Correio da Manhã e pelo Expresso", relembrando que "a devassa da vida privada dos cidadãos por alguns meios de comunicação não é, por si, susceptível de transformar acontecimentos privados em públicos, nem a sua divulgação e conhecimento legitima que eles possam ser retomados por outros media". A Secção Disciplinar da CCPJ, porém, arquivou as queixas. Recorri para o plenário; o recurso foi indeferido. E porquê? Diz a CCPJ que era "de interesse público", identificar a relação, "que era pública" (a CCPJ não vê nisto contradição) por causa do "conflito de interesses" - a saber, o de ter "defendido publicamente" a pessoa de quem, segundo a CCPJ, sou "publicamente" namorada.
E que faz este órgão máximo e autorizado da deontologia jornalística para declarar "pública" uma relação cujos alegados membros nunca tornaram pública - ou seja, nunca declararam publicamente existir? Não se atrapalha: refere fotografias de paparazzi efectuadas à porta da minha casa como eventual "liberdade de informar", juntando-as aos autos (sim, juntando-as aos autos) e diz que a relação é "assumida" numa biografia de José Sócrates, inferindo ser o próprio biografado a assumir nela a tal da relação - o que é falso, mas a ser verdade não podia ter qualquer relevância na apreciação da queixa de outra pessoa e nas questões deontológicas a dirimir (até porque nenhuma das peças cita fontes no que ao alegado namoro respeita). Concluindo: aquilo que a CCPJ cita como provas da "publicidade da relação" ou é nulo ou é falso. O rigor continua na definição do "conflito de interesses". A CCPJ situa-o na "defesa do primeiro-ministro", sem mais. Esquece-se de explicitar por que carga de água dizer que não houve jornalismo de investigação no caso Freeport é "defender o primeiro-ministro". Acha a CCPJ que todos os opinadores que disseram o mesmo são namorados do primeiro-ministro? Ou só quem a CCPJ acha que não tem namoro com o PM pode criticar o jornalismo em Portugal? E, mais bizarro ainda: por que raio haveria conflito de interesse no facto de uma jornalista opinar sobre jornalismo, sejam quem forem as suas relações pessoais?
Colher esta visão de uma relação, real ou percepcionada, meramente pessoal (o que é diferente de uma relação hierárquica, económica, etc.) como ferrete de suspeição permanente não é só uma intromissão intolerável na esfera privada e uma menorização obscena da pessoa atingida, da sua capacidade de julgamento e da sua liberdade. É um absurdo que, arvorado em princípio, prescreveria - como aliás faz (sem, aparentemente, se dar conta de incorrer na atitude que no mesmo parecer considerara ilegítima, isto é, a de "retomar" a devassa efectuada por outros) o parecer citado do Conselho Deontológico do Sindicato - a publicação de "declarações de interesses", em actualização permanente, de quem opina (e de todos os jornalistas, por maioria de razão) ao lado das colunas e das notícias, em rodapé nas TV, com listagens de amigos, familiares e amantes (sobretudo, claro, os clandestinos), presentes, passados e futuros, para não falar de quem lhes paga almoços, de quem lhes oferece presentes e, já agora, quando forem jornalistas, de quem lhes passa as notícias. A não ser, claro, que toda esta preocupação só diga respeito à minha pessoa e a CCPJ e o CD queiram, em concorrência com a chamada imprensa "do coração", conhecer, a par e passo, as vicissitudes da minha vida amorosa, mascarando esse voyeurismo com preocupações deontológicas. O que não é só sonso, deplorável, antiético e persecutório: é uma espécie de ilustração perfeita do infeliz estado a que chegou o jornalismo português.
hoje recebi um livro enviado por alguém que so conheço por sms e uma ou duas conversas telefónicas. perguntei: por que me envia um livro? é verdade que faláramos de livros -- faláramos de pouco mais -- e que tinhamos trocado gostos (roth, mccarthy, mcewan). a resposta foi: porque gostamos de livros e somos poucos (achei essa da irmandade um bocado exagerada, mas pronto).
o livro, de um 'novo americano' (novo para o ofertador do livro, acho eu, e para mim certamente, nunca li nada deste homem já entradote) é de rush. chama-se mating.parece que se passa em áfrica, onde o autor viveu muito tempo (talvez viva ainda), na zona do kalahari, o deserto vermelho.
mating: ora que nome, como dizer, inesperado, quase hilariante (não me perguntem porquê, eu não saberia sequer começar a explicar -- ou por outra saberia mas seria muito maçador).
para a troca quis vender rhys -- e vendi, não sei se com inteiro sucesso --, hardy (o meu favorito, jude the obscure) e, for something completely different (embora talvez não tanto assim), to kill a mocking bird.
à harper lee li-a em agosto de 2006, no brasil (em pacote com o everyman e com o l'amour do stendhal, sim, caraças, uma salada russa). foi tudo que eu esperava e mais. comprei logo meia dúzia para oferecer -- ofereço espasmodicamente livros de que gosto muito, como uma evangélica a impingir bíblias.
há muito tempo que andava para ler to kill a mockingbird, de harper lee. naquele tipo de coincidências felizes que de tão felizes não nos parecem coincidências (também acontece com as infelizes, hélas), encontrei uma edição da random house, ainda por cima linda, a olhar para mim na fnac quando lá fui comprar a molhada de livros para férias.
é um bom livro para se ler no início da adolescência. não calhou. mas lê-lo agora, bem longe, bem depois -- tão tão depois -- é como entrar numa máquina do tempo. para quando os verões eram infinitos e os pais invencíveis e sempre justos e sempre ali. quando todos os dias inventávamos novas brincadeiras e faziamos de tudo uma aventura e até o frio e o calor eram uma conversa do mundo connosco. quando estava tudo tudo por estrear.
e depois, quer dizer, antes e durante, há a linguagem. contar como uma criança, pensar como uma criança, é uma arte difícil. lee domina-a sem alardes. to kill a mockingbird é uma história de amor pela infância contada por alguém que, como ruy belo, sabe que o verão era a única estação.
é também uma história do amor de um homem invisível por duas crianças, o amor de um estranho que vela pelo rapaz e a rapariga que vivem na casa ao lado. sem esperar nada em troca, apenas a possibilidade de os ver e de os amar e de, um dia, se for preciso, lhes salvar a vida.
'neighbours bring food with death and flowers with sickness and little things in between. boo was our neighbour. he gave us two soap dolls, a broken watch and chain, a pair of good-luck pennies, and our lives.'
às vezes penso que, ao contrário do que é comum dizer-se, as pessoas sem crianças as vêem como um milagre maior que as que as têm. falta de hábito, talvez, ou uma atenção diferente à gramática da infância, um enternecimento não possessivo com esse milagre fugaz.
harper lee ganhou uma série de prémios e depois mais nada: nunca mais escreveu. tinha só este livro perfeito para escrever -- para quê outros? ser capaz assim de saber quando aceitar o silêncio do mundo sem mais quixoterias. little things in between, little things in between. como um livro oferecido por um quase desconhecido, um vizinho invisível que deixa coisas no buraco da árvore.
"(...)Over the past half century, UK bank capital has remained at between 3 per cent and 5 per cent of assets, these assets have risen tenfold, relative to GDP, and returns on equity have averaged 20 per cent. Such high returns, in an established industry, must mean either high barriers to entry or excessive risk-taking. The former are undesirable and the latter terrifying, particularly in view of the huge rise in the state’s exposure to the risks.
We will never have a better opportunity than now to redress the deteriorating terms of trade between the banks and the state. A big part of the solution must be to shift incentives. The more credible are the pre-announced limits on support from government, the more effective will be the changes in incentives inside banks, and vice versa. The less we are able to shift these incentives, the more important it will be to impose heavy regulation. The combination of today’s incentives with today’s safety nets and yesterday’s “light touch” regulation was devastating.
Yet, regardless of the success of reforms of incentives in – and regulation of – the financial sector, it is reasonable to recoup not only the direct fiscal costs of saving banks but even some of the wider fiscal costs of the crisis. The time has come for some carefully judged populism. A one-off windfall tax on bonuses would make the pain ahead for society so very much more bearable. Try it: millions will love it." (Martin Wolf, Tax the windfall banking bonuses)
Quando até um dos principais colunistas do Financial Times já defende isto, talvez não fosse má ideia começarmos a discutir o tema.