O "caso" da Jonas e da Ensitel tem provocado algumas reacções relevantes. As mais interessantes dizem respeito aos que saem alegadamente em defesa da referida empresa, por acharem que se trata de um "linchamento", um pouco em alinhamento com o comunicado da mesma no Facebook que menciona uma "campanha difamatória" assente em "factos absolutamente falsos" que a referida blogger terá promovido. Vamos a assentar uma coisa de vez (desculpem o tom pedagógico como se fossem criancinhas de 4 anos): o caso estava arrumado, a Jonas recorreu, em tempo devido, a um tribunal arbitral e perdeu; e conformou-se. Não vejo, portanto, nem revanchismo nem "campanha" nenhuma. Apenas uma coisa: contar a história no seu blog, que foi o que fez ao longo da saga e no fim dela. O último capítulo é de 22 de Maio de 2009. Finito. Pois na empresa alguém se lembrou de exigir que os posts fossem retirados. Como não foi obedecida, processo judicial. Não está em causa nem telemóvel, nem mau serviço, nem reparação ou indemnização. Aliás, ela explica tudo isso num post de há pouco. Vão lá ler, sff.
Encaro o fenómeno WikiLeaks como apenas mais uma consequência das implacáveis leis da economia digital.
Como tal, não acredito na eficácia de tentativas para travar as fugas de informação por meios legais ou tecnológicos. Por outro lado, tampouco alimento uma visão idílica da "sociedade transparente" como paraíso da liberdade de expressão.
Quando o acesso à informação em bruto se torna ilimitado, a batalha pelo controlo das mentes faz-se menos pela gestão dos segredos do que pelos processos de filtragem que condicionam o modo como a realidade é entendida. É aqui, portanto, que cabe focalizar as nossas atenções.
É disso que trata o meu artigo desta semana no Jornal de Negócios.
A semana passada mencionei a palavra Wikileaks. Usei o feminino - pensava numa organização, numa fonte - mas quem reviu o texto alterou o género para masculino, presumo que para denominar o site. Ora o sucedido não só demonstra como se formata o discurso (e portanto a percepção) sem se admitir que, como é o caso, não sabemos bem do que estamos a falar, como está longe de ser um detalhe. Quando consideramos que Wikileaks é um site, assumimos que se trata de uma espécie de plataforma de recepção de conteúdos, um lugar sem, digamos, espessura; falar de Wikileaks como organização é designar uma estrutura, um conjunto de pessoas com história, hierarquia, perspectiva, propósitos e financiamento - que importa identificar e escrutinar.
Do nosso entendimento do que é isso de Wikileaks depende pois, em português, o "sexo" que lhe conferimos. E não é decerto pequena ironia que o sexo se tenha transformado, ao longo do último mês, num dos assuntos Wikileaks, a propósito das acusações de duas suecas ao dirigente/cara da organização/site, o australiano Julian Assange. Como se o que estivesse em causa fosse, mais do que escrutinar que objectivos tem este homem e a sua organização, se se trata de uma boa ou de uma má pessoa. E aqui reside outra das ironias desta história: é como se, ao mesmo tempo que se discute se a transparência total (seja lá isso o que for) é ou não um "bem", se fosse incapaz de admitir a espessura essencial das coisas (e das pessoas). Só assim se explica que os apologistas mais furiosos de Assange tenham certificado que as mulheres que o acusam têm ligações à CIA (através de um intrincado de "relações" hilariante, que inclui o facto de uma delas ter criticado Fidel) e pessoas que habitualmente se definem como feministas recusem ver violência na imposição de uma relação sexual sem preservativo: o herói não pode ter mácula. A inversa, claro, é verdadeira: mesmo que se viesse a provar aquilo de que acusam Assange isso não qualificaria o material que disponibiliza através do site que gere, nem sequer os seus objectivos nessa disponibilização: um mesmo indivíduo pode defender a democracia total e o escrutínio absoluto (e portanto a irrisão?) de "todos o poderes" e, no contexto de uma relação sexual, violar a vontade de outro sem que isso determine o valor daquele seu contributo para "melhorar o mundo".
Claro que quando vemos o advogado sueco de Assange reagir à publicação, pelo The Guardian, de documentos policiais inéditos relativos ao processo em que o australiano é acusado com uma queixa formal à polícia no sentido de esta investigar como "material tão sensível foi passado [leaked, no original] à imprensa" e acrescentar "não gosto da ideia de que Julian seja colocado na situação de ser julgado nos media" temos a tentação de sentenciar: justiça poética. Mas, precisamente, não é de justiça que se trata; e precisamos de saber mais, muito mais, para saber se é sequer justo.
Ao longo de 2010 fomos assistindo a sucessivas - e por vezes entusiásticas - declarações de apoio de responsáveis europeus aos 'heróicos' esforços dos países periféricos para pôr as suas finanças públicas em ordem. A Europa parece finalmente ter encontrado a sua vocação: coloca-se fora do jogo que os periféricos travam com os mercados, mas aplaude e dá todo o apoio moral. É bonito, sim senhor, mas não chega. Em vez de se comportar como uma espécie de cheerleader, a UE podia, de facto, tentar ajudar. Como? Sendo coerente com as suas declarações, isto é, usando o seu poder para garantir que, enquanto os países em dificuldades forem cumprindo o acordado, estes têm todas as condições para realizar os ajustamentos necessários sem pressão adicional e contraproducente dos mercados. É que, ao contrário do que Merkel e companhia julgam, os mercados não estão a disciplinar ninguém; estão a tornar a vida dos periféricos impossível. Os líderes europeus bem podem ir dizendo que os mercados não estão bem a ver a coisa, mas, enquanto estes insistirem em ignorar os louvores dos primeiros, esse 'apoio' não passa de uma farsa. E esta farsa só não se transforma numa tragédia porque o BCE age (ou melhor, é forçado a agir) como bombeiro, com sucessivas intervenções in extremis que vão permitindo que este jogo absurdo continue a ser jogado.
Anda por aí alguém que me ilumine sobre a origem desta carantonha existente numa das paredes da catedral de Sevilha? É verdade que o astronauta de Salamanca é um choque maior mas, mesmo assim, a caruncha faz-me confusão (e do astronauta conheço a história).
Adenda: muito recentemente a catedral de Lyon também ganhou uma nova gárgula.
A ideia da fatalidade, tão querida à “alma” portuguesa, tem uma das suas mais deslumbrantes manifestações na frase “para o que eu havia de estar guardada/o”. A ideia de que estamos “guardados” para alguma coisa, como se dentro de uma gaveta da vida, protegidos entre meias e camisolas fofinhas, quentinhos e amodorrados, até que a coisa se abre de supetão e zás, somos tirados para fora e expostos à fúria dos elementos para descobrirmos o que é bom para a tosse (também gosto desta, sobretudo porque não faz qualquer sentido) é realmente estupenda. Como se tudo o que se passa de bom ou normal na vida de alguém fosse apenas um enganoso, perverso prólogo à verdadeira natureza das coisas, ao destino “certo” que, numa curva do caminho, nos assaltará em toda a sua esplendorosa maldade; como se devêssemos encarar qualquer período de acalmia com a desconfiança própria de quem sabe que é só o aguardar dos pavores que nos estão prometidos.
Na sua certificação de um (mau) destino marcado, em relação ao qual nada se poderia fazer, e no estoicismo quieto, auto-derrisório, do “para o que eu havia de” há, no entanto, uma ironia tão aparatosa que dificilmente se imagina alguém mesmo aflito – com um desgosto realmente importante – a dizê-la. É, em regra, um comentário de intuito cómico, uma espécie cultivada de “c... me f...” (quem não sabe o que falta no lugar das reticências fique assim, que está muito bem) ou do mais aceitável “raios me partam”. E que, ao afirmar o azar e o seu carácter fatal, de coisa “prometida”, se contradiz ao qualificá-lo como inesperado e, sobretudo, como sem sentido – algo que “não encaixa”. Porque, afinal, alguém que diz, perante uma adversidade, “para o que havia de estar guardada/o” está a certificar que até aí tudo lhe correu razoavelmente bem. Que teve uma sorte incrível até então, porque esteve “guardado” de chatices – para, enfim, levar com a que deu origem ao desabafo.
Sim: não se imagina alguém que teve azar desde o berço, um órfão de mãe e pai que vive de esmolas e pontapés na lama das valetas, a sair-se com esta. É o lamento de quem viveu ligeirinho, descansado, de barriga cheia, e se surpreende com o advento de uma contrariedade; espécie de protesto formal aos poderes superiores, tipo “andaram vossemecês a embalar-me, a dar-me corda, para agora ma tirarem toda? Não se faz, pazinhos.” É, em suma, a assunção de uma reviravolta que contradiz de tal modo tudo o que até então era comum, habitual, que só pode ser entendida como uma partida dos deuses – e nunca, jamais, uma consequência de algo que se fez ou não.
Para o que eu havia de estar guardada/o, gémeo do também tão popular “guardado está o bocado para quem o há-de comer” (seja o bocado doce ou azedo, está arrecadado com destinatário certo, faça lá ele o que fizer, trabalhe ou não para o merecer), é então, no reino das frases feitas, inimigo figadal de “colheste o que semeaste” ou “fizeste a cama, deita-te nela”. É a ajuramentada declaração de irresponsabilidade face aos factos, o protesto formal, se bem que fútil, face à sentença que um tribunal superior desfechou sobre a nossa impreparada moleirinha. Mas, de alguma forma, encontra-se com as frases inimigas na ideia de uma determinação: se colher o que se semeou obtém um resultado esperado e evidente, estar guardado para algo que advém de um capricho cósmico que “faz com que” é igualmente um certificado de que o mundo se regula por uma forma qualquer de sentido -- mesmo o que não faz nenhum. É dizer que quem esteve guardado para uma desfeita qualquer mereceu-a, mesmo se não imagina porquê. É, enfim, fazer paz e altivez com o que vem, como no verso de Ricardo Reis: “Negue-me tudo a sorte menos vê-la/ Que eu, estóico sem dureza, /Na sentença gravada do Destino/Quero gozar as letras”.
(publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 19 de dezembro)