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jugular

Falta o pão, resta o circo

Os rocambolescos acontecimentos de hoje nas lojas da cadeia Pingo Doce, com confrontos e feridos confirmados à mistura, sugerem que, em Portugal, os saques aos supermercados são organizados pelos seus proprietários. Temos capitalistas muito à frente.
Como se pode constatar pela leitura dos múltiplos comentários sobre o assunto que proliferam na net, nada disto contribui para melhorar a já degradada imagem que o marketing tem entre a população mais instruída.
Terá a iniciativa sido um sucesso para o Pingo Doce do estrito ponto de vista comercial? Não há dúvida que a insígnia conseguiu mais uma vez chamar a atenção para si própria e que terá batido todos os seus records de vendas num só dia.
Embora o Pingo Doce não tenha propriamente necessidade de aumentar a sua notoriedade, publicidade gratuita é sempre bem vinda. Além disso, terá reforçado o seu posicionamento de preço baixo face ao seu concorrente mais directo, que é o Continente.
Por outro lado, mesmo ignorando uma possível condenação por concorrência desleal, a empresa tornou-se responsável por cenas degradantes que ofendem a consciência de muitos de nós. É difícil negar-se que o estado de necessidade de muita gente foi objectivamente transformado num espectáculo ao serviço da estratégia promocional do Pingo Doce.
Tampouco é bonito pôr consumidores contra trabalhadores (forçados a trabalharem no 1º de Maio), situação que, naturalmente, terá desagradado a muitos deles, para mais nas condições de caos, grande incómodo e algum perigo em que foram colocados.
Talvez isto não preocupe muito a administração do Pingo Doce, que, consabidamente, mantém uma relação muito descomplexada com a ética empresarial. Apesar disso, mesmo que muita gente se sinta indignada, não lhe resta grandes alternativas viáveis para fazer as suas compras.
A degradação da reputação de uma empresa pode não provocar prejuízos imediatos, especialmente quando ela detém uma vantagem competitiva evidente. Todavia, em igualdade de circunstâncias, situação que tarde ou cedo ocorrerá, a má vontade de clientes, fornecedores, parceiros e colaboradores acabará por fazer-se sentir.
Mas suponho que este já será um raciocínio excessivamente abstracto para os gestores do Pingo Doce.

sweet and sour

A todos os que hoje correram em ambiente de festa e de euforia ao Pingo Doce, tenho duas coisas a dizer: 1. para quem é desempregado, reformado ou ganha ordenado mínimo (ou mesmo médio), fazer compras com 50% de desconto é um alívio para os orçamentos familiares e um desaperto no nó mensal. 2. o Pingo Doce usou os clientes contra os seus próprios trabalhadores; não consigo esquecer aquela máxima atribuída (erradamente, ao que sei), ao Brecht: "Quando os nazis levaram os comunistas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era comunista". E pergunto: o que aconteceria se, na hora de abertura de uma loja, os clientes fossem informados de que ficaria encerrada devido à greve dos empregados? Seguiriam todos em conjunto para a manifestação do 1º de maio, a celebrar o esforço de quem trabalha, presumo...

elementar, meus caros

A crise promove a solidariedade, faz emergir o que de melhor há em todos nós, revela o espírito de entreajuda, facilita a coesão social, porque atinge-nos a todos, não é? Os tempos são sombrios, mas a generosidade e abnegação dos portugueses saberá superá-los, certo? Errado. Só nos livros, nos discursos, nas declarações de intenções, nas frasezinhas de ocasião e a propósito. De resto, é a selva. Há um caso presente que está a causar furor no dia de hoje. Só gostava que fosse um furor para encher uns certos senhores de alcatrão e penas, como nos livros do Lucky Luke. Sou geralmente cético e contido em relação a muitos episódios que causam "indignação", nomeadamente nas redes sociais. Mas esta parece-me que excede tudo, pelo oportunismo, pelo sentido de desprezo e de provocação a quem trabalha, do abuso vergonhoso de uma posição de força perante uma situação de crise como a que vivemos. Elementar, meus caros: estão a gozar connosco.

O Pingo Doce decidiu, em pleno assomo de genialidade empresarial, fazer uma promoção hoje. Não é um descontito em cartão; é um desconto real, de 50%, a compras superiores a 100 euros. Vão caindo, minuto a minuto, as informações sobre filas imensas, confusão, desacatos, brigas entre clientes, agressões a funcionários. Nada disto seria muito grave, em circunstâncias normais. Mas hoje não é um dia qualquer: é 1º de Maio, Dia do Trabalhador, feriado nacional sobre o qual vigorou durante muito tempo um acordo de princípio, entre patrões e trabalhadores, de que seria dia de encerramento. Há algum tempo começaram as exceções. No ano passado, a funcionária da peixaria do supermercado que costumo frequentar dizia, alto e bom som para quem a quisesse ouvir, que estava muito triste com o que estava a ocorrer. Hoje havia greves marcadas em várias cadeias de supermercados, com adesões variáveis. Nada disto, por si só, seria também muito grave.

O que é grave, vergonhoso, é a conjugação de tudo num cenário de crise e precisamente no dia de hoje, e a forma como uma empresa dominante faz uma jogada ignóbil, um perfeito "divide to rule". Lembrei-me logo de outros tempos, dos cenários que levaram, precisamente, às conquistas sociais e à instituição do 1º de Maio. Nesses tempos, os donos das fábricas lançavam operários contra operários, grevistas contra fura-greves, todos miseráveis, todos sujeitos à mesma pressão; hoje, a Jerónimo Martins lança consumidores contra caixas e empregados de loja. É um dia de suprema humilhação para os trabalhadores do Pingo Doce: não só são miseravelmente mal pagos, e muitos, precários, como são forçados a trabalhar (e quem vier dizer que "são livres de recusar" merecia ser chicoteado na praça pública) no dia que deveria consagrar o respeito pelo seu labor, como ainda são confrontados com hordas de clientes desesperados, e suportar um dia infernal. Alguém deve estar a dar enormes gargalhadas nos seus gabinetes, a esta hora, enquanto olham para os clientes a esvaziar prateleiras e a esgotar carrinhos, verificam as vendas recorde e confirmam a reduzida adesão à greve. Genial, de facto. Que se seguirá? Uma sugestão: quando houver greves ou protestos marcados, abram da meia-noite às 6 da manhã ou façam uma maratona de 2 semanas seguidas, non-stop, com "happy hour" a essas horas, com iguais descontos; vai ser uma gargalhada.

Gostava, em prol do que resta da dignidade dos portugueses, que fosse feito um boicote ao Pingo Doce, daqueles de deixar lojas às moscas. Porém, num país nas mãos de meia dúzia de retalhistas e de banqueiros (e agora lembro-me dos Donos de Portugal), limitar-se-ia provavelmente a favorecer a concorrência, que não é menoz voraz. Isto, infelizmente, é também cada vez mais elementar.

Adenda: gostava de saber a opinião deste senhor.

 

P.S.: Estranhamente, este post assinala o máximo de comentários permitidos (65 mil e tantos). Na verdade, nem um foi aprovado. Foi bug ou hacker. A anomalia já foi comunicada ao Sapo. 

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