No Algarve, na Madeira e sabe-se lá onde mais, populações aflitas, bombeiros exaustos. Hoje à hora do almoço, no meio das imagens, do diretos e dos apelos, a palavra "descoordenação" foi ouvida várias vezes. Um autarca disse, até, que o problema não era a falta de meios, era a "descoordenação". Não prego moral nem me assiste autoridade para exigir o que quer que seja a quem está 48 e mais horas a tentar salvar pessoas, bens e floresta. Mas não posso deixar de recordar, com um sorriso amargo, o que escrevi há mais de 4 anos acerca do assunto.
Corria o ano de 1987. Na Faculdade de Letras de Lisboa vivia-se uma efervescência invulgar que atravessava as salas e os corredores: um numerus clausus pós-licenciatura, tirado inabilmente da cartola pelo então ministro da educação, João de Deus Pinheiro, e que ameaçava condicionar o acesso dos licenciados à vida profissional, mobilizava os estudantes. Nesse ano tive a minha experiência de luta estudantil: RGAs com moções votadas por unanimidade, o Gil Garcia (sim, esse mesmo) a galvanizar o povo - era o único que falava sem microfone, com a veia na testa quase a rebentar-, manifestações, cartazes, solidadariedade universitária, os estudantes na rua, um blackout informativo quase total. Quem hoje se queixa da cobertura dos media sobre eventos de rua não sabe a sorte que tem, nessa altura só havia RTP, e completamente controlada pelo governo. Recordo-me de uma manifestação que seguiu da Cidade Universitária para a 5 de Outubro, e daí para o Rossio, em plena hora de ponta. Quando lá chegamos estava a polícia de choque à espera. Nem uma imagem, nem uma palavra no noticiário dessa noite. Foi um ano deveras singular. Foi também por essa altura que perdi a minha ingenuidade científica. Na discussão de um trabalho de História Institucional e Política Medieval, sobre D. Pedro I, levei uma rabecada da docente em frente à turma. Erros? disparates? Não. Apenas o pecado de lesa-universidade de ter incluido na bibliografia dois artigos de José Hermano Saraiva.
Li no Público que, pela boca de Teresa Leal Coelho, o PSD acusa o Tribunal Constitucional de, através do seu muito falado acórdão, condicionar o governo na elaboração do OE de 2013. Ora eu pensava que a Constituição tinha, entre outras, essa função, ou seja, servia para condicionar o poder legislativo e executivo do governo, obrigando-o a exercer estas funções no respeito da mesma.
Gráfico que acompanha o artigo de Caldeira Cabral no Negócios de hoje: "Estratégia de consolidação chumbada", incompreensivelmente não inserido na edição em papel.
Este governo quer estender a sua germanofilia à educação. O "modelo dual", há tanto tempo inscrito nos programas do PSD (sem, por bons motivos, nunca ter passado do papel), parece querer ver finalmente a luz do dia. Curiosamente, há vários anos que se discute a equidade e a sustentabilidade do dito modelo na própria Alemanha. Um dos choques que provocaram essa reflexão resultou dos resultados dos alunos alemães no PISA 2000 (sim, o PISA, o tal estudo que Nuno Crato venerava enquanto os resultados confortavam os seus preconceitos). A imagem seguinte é retirada do "Education at a Glance 2011" e descreve o que se passou na útima década.
Aqueles que enchem a boca com a preocupação com "igualdade de oportunidades", podiam pelo menos saber que se há área em que o modelo alemão revela enormes fragilidades é o da equidade.
O modelo alemão, até tomar a desenho atual, foi evoluindo em condições sociais, laborais e económicas particulares, e foi mimetizado por países com tradições e instituições semelhantes, como a Áustria e a Suíça. Mantém-se porque tem algumas vantagens comparativas sobre soluções alternativas, e porque a inércia institucional é poderosa na ausência da obrigação de mudar.
É, porém, bizarro um país cujo sistema de ensino não tem qualquer tradição nem afinidade com o modelo dual adoptá-lo em pleno século XXI.
Colocar crianças aos 11/12 anos a "escolher" o seu futuro talvez não chocasse as pessoas há 60 anos. Hoje, é uma aberração. E quando defendida em nome das suas "oportunidades", é pura hipocrisia.
De qualquer forma, fica claro para todos verem o real significado dos exames no 4.º e 6.º ano, se dúvidas houvesse: o objetivo é selecionar, e não melhorar as aprendizagens.
Antes do governo embarcar em experiências destas, devia perceber por que o modelo alemão resultou na Alemanha e não conseguiu ser importado com sucesso, por exemplo, pela Inglaterra nos anos 80 da liberal Thatcher, e por que a importação limitada de certas características continua a não resultar hoje.
O que a experiência alemã (e a britânica) mostra(m) é que não é possível ter o modelo dual e basear uma estratégia de crescimento na flexibilização radical do mercado de trabalho e do produto (ainda por cima com o objetivo de reduzir salários).
Tirando uma breve interrupção durante a 2.ª Guerra Mundial, as importações portuguesas superaram sempre as exportações ao longo do século passado e dos primeiros anos do presente. Anuncia-se, porém, que está para breve – talvez já para 2013 – o restabelecimento do equilíbrio.
Como foi possível um período tão longo de défices crónicos? Será que vivemos todo esse tempo acima das nossas possibilidades? É possível que nunca tivéssemos tido uma economia competitiva? E que espécie de milagre é este que nos está agora a acontecer?
No meu artigo de ontem no Negócios tentei explicar de uma forma acessível uma ideia difícil de entender: porque é que o desequilíbrio das contas externas de um país pode não ter nada a ver com uma falha de competitividade e ainda menos com "vivermos acima das nossas posses". Sei que é difícil fazer compreender isto em poucas linhas (aparentemente, muitos economistas diplomados ou não percebem ou fingem não perceber), mas alguém tinha que tentar.