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Bom povo português

Por que é, em todo o mundo, tão ténue a reacção dos povos à violência inaudita a que estão a ser sujeitos em nome da milagrosa austeridade?

Olhamos à nossa volta, e o que vemos? Protestos dos pilotos que reivindicam uma parte do capital da TAP. Manifestações de residentes em freguesias ameaçadas de extinção. Greves de estivadores contra a redução da remuneração das horas extraordinárias. Manifestações de professores com vínculos precários. Queixas de cidades e vilas que vão ficar sem tribunal. Greves de maquinistas da CP. Movimentações contra o subfinanciamento da Casa da Música. Protestos contra o ministro Relvas onde quer que ele vá. Manifestações dos proprietários de restaurantes contra o IVA à taxa máxima.

Em suma: o protesto popular dispersa-se por uma pluralidade de micro-causas, revelando-nos uma sociedade tribalizada em extremo, por isso incapaz de se mobilizar em torno de grandes temas e de se organizar para propor alternativas ao pensamento dominante que nos condena a vegetar sem fim à vista.

A sociedade esfarelou-se em milhares de perspectivas díspares (ou mesmo divergentes) que, mesmo nesta situação de crise extrema, têm imensa dificuldade em construir plataformas comuns de resistência. Nestas condições de fragmentação generalizada das forças sociais, o único poder que não só subsiste intacto como se revigora a cada dia que passa é, como sabemos, o do dinheiro.

O que tanto nos seduziu no 15 de Setembro foi ter aparentemente conseguido romper esta lógica suicida de dispersão do protesto, agregando subitamente o que andava desencontrado. Tirar directamente do bolso dos assalariados para colocar no dos patrões, como previa o projecto de mexida na TSU, restaurou por um momento o confronto directo de classes característico de outras eras.

Só uma gaffe deste tipo parece hoje capaz de juntar toda a gente, sobrepondo às micro-causas uma grande causa unificadora. Ainda assim, convém lembrar que o 15 de Setembro foi principalmente uma gigantesca manifestação da classe média, em que os mais pobres estiveram quase ausentes. Acresce que, após o recuo do governo, o movimento sumiu-se tão rápida e surpreendentemente como nascera.

É indesmentível o extremo descontentamento da população perante a situação actual. Só um cego não se apercebe da crescente hostilidade da rua não só contra o governo, os partidos e os políticos, mas também contra os poderosos em geral. Prevalecendo o protesto inorgânico, cada vez mais desenquadrado das forças políticas, sindicais ou outras, a imprevisibilidade aumenta.

Ninguém sabe quando, onde e como o descontentamento espontâneo se manifestará. Ele espalha-se silenciosamente como uma epidemia, minando a confiança nas pessoas e nas instituições, pondo em causa comportamentos estabelecidos que sustentam a convivência civilizada e, a pouco e pouco, reforçando a crença no salve-se quem puder.

A reacção desesperada que inevitavelmente ocorrerá poderá ser mais ou menos visível, mais ou menos espectacular, mais ou menos violenta. Uma coisa me parece certa: as classes dirigentes irão ter saudades do tempo da contestação ordeira a que se habituaram nas últimas décadas.

Estagnação e legitimidade

Passou relativamente despercebida uma declaração proferida há duas semanas por Paul Polman, CEO da Unilever, acerca dos cenários macroeconómicos em que essa grande multinacional de bens de consumo correntes fundamenta a sua estratégia para o futuro.
Segundo ele, a Europa enfrenta a perspectiva de10 anos de estagnação e, nos EUA, chegará a 47 milhões o número de pobres que adquirirão alimentos com senhas recebidas dos programas estatais de assistência. "Quem não partir destes pressupostos estará a enganar-se a si próprio", acrescentou.
Em consequência, todas as esperanças de expansão da Unilever se concentrarão nos mercados emergentes (o que, cada vez mais, quer apenas dizer "China"). Em contrapartida, na orla do Atlântico Norte, a orientação será introduzir no mercado variantes "low-cost" das suas actuais marcas, algumas delas previamente desenvolvidas para países como a Índia.
Quando a estagnação começa a ser interiorizada como um estado de coisas normal e, por isso, incorporada nas expectativas dos agentes económicos, ganha uma dinâmica própria e transforma-se numa "self-fulfilling prophecy".
Empresas que não antevêem crescimento não investem, e essa mesma ausência de investimento acentua a tendência para a estagnação. Ora um sistema económico-social que não gera crescimento nem empregos tende a perder legitimidade perante a opinião pública. O mesmo é dizer que, a prazo, está condenado a desaparecer, substituído por sabe-se lá o quê.

Os super-emigras

Um grupo de gente que se considera a si mesma a nata da diáspora portuguesa reuniu na passada quarta feira com o Presidente da República para lhe dar conta de uma benemérita iniciativa que entre si congeminou.

Consiste ela em se unirem para, tirando partido dos seus contactos ao mais alto nível nos altos círculos internacionais em que se movimentam, melhorarem a imagem do país nesse mítico “lá fora” que tanto nos mói a paciência.

O que irá exactamente fazer o auto-denominado escol dos portugueses espalhados pelo mundo? Não tendo encontrado uma resposta precisa a esta interrogação, presumo que a principal actividade da agremiação consistirá em fazer circular entre os seus membros informação privilegiada sobre as excelências do país que os ajude a deixar boquiabertos os gentios diversos com quem diariamente convivem, cada vez que, no meio de uma reunião de administração, de uma conferência científica ou de uma vernissage, alguém mencione o santo nome de Portugal.

Assim sendo, a segunda pergunta terá evidentemente que ser: e porquê limitar os membros dessa frente mundial pró-lusitana a 300 indivíduos? Que mal haveria em abranger todo e qualquer emigrante português ansioso por participar na cruzada?

Ora, valha-nos Deus! Pois não se vê logo que toda a graça da coisa consiste exactamente em limitar o acesso? Tirando alguns (pouquíssimos) indivíduos indiscutíveis, a generalidade dos candidatos a gente importante esgadanhar-se-á para ser admitida entre os happy few. Não necessariamente porque os seus peitos inchem de ardor patriótico, mas porque ter entrada num grupo restrito de gente poderosa e influente é não só uma honra, como um activo crucial para a construção de uma carreira de sucesso.

De modo que este pequeno pormenor – a limitação do membership a 300 pessoas – vem afinal revelar-nos não só o segredo da organização como aquilo em que verdadeiramente consistirá a sua actividade.

Cunha não presta, mas networking é bom. Basta traduzir para inglês.

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