Na década de 70, havia um tubarão chamado Jabberjaw que dizia repetidamente "woo woo woo, no respect". No Portugal da década de 2010, há um presidente da República que, por interposta pessoa, se queixa do mesmo. O problema é que o simpático tubarão era um desenho animado que fazia rir, enquanto que a figura de Belém é tudo menos simpática e muito menos risível. No Diário de Notícias de hoje, alguém que assina como "a vespa" espeta o seu ferrãozinho na pessoa que disse, a quente e sem contemporizações, o que metade do país pensou na quinta feira: "um discurso miserável de um miserável presidente". Ai, que falta de respeito, segundo a mosquinha cavacófila, e logo pela voz de um deputado da Nação. Não é bem falta de respeito. É mais falta de respeitinho que, como todos se recordam, é muito bonito. Como é possível? O próprio escrito dá pistas. O deputado em causa - João Galamba - é do PS. Pior: é um "adorador do socratismo". Ora, os idólatras, aqueles que adoram falsos ídolos em vez do Deus verdadeiro, não têm perdão, como qualquer judeu, cristão ou muçulmano sabe. Ainda por cima, o bezerro de ouro está de volta após ausência prolongada e isso é motivo de preocupação para os guardiões da Fé. Faz sentido. Fé na democracia? Aparentemente, sim, pois o dito deputado, como o insetozinho mullah relembra, foi "eleito e pago pelos contribuintes". Mas Cavaco, pelos vistos, não; não só não foi eleito pelo povo como não é pago pelos seus impostos, deduzo eu. Só assim se entende que no referido discurso de quinta feira tenha desdenhado - o símbolo máximo de um Estado democrático a dizer isto mereceria, num país ciente da sua cidadania, muitos ovos podres atirados à esfíngica efígie caváquica - da vontade soberana de um povo, expressa em eleições. Isto já sou eu a divagar. Recordei-me das palavras de Manuela Ferreira Leite, há poucos anos, quando, num deslize infeliz, desabafou que bom que seria suspender a democracia por seis meses para equilibrar as contas. Mal sabia eu, mal sabíamos nós, que um presidente da República o viria a exprimir num discurso solene na efeméride mais importante da democracia. Mas nada disso parece afetar a cavacofilia dominante. A alegada falta de respeito do deputado idólatra é que importa. Pois eu cá digo: respeito, não, respeitinho, porque um presidente não obtém respeito do seu povo pelo estatuto da posição que ocupa, ganha-o pelo merecimento das suas palavras e atos. E o João Galamba diz, e eu repito, e meio Portugal afirma, que Cavácuo não o merece.
Só pode, um destes dias era o Burkina Faso e hoje queria que o PS pedisse desculpa a Cavaco Silva por o João Galamba ter dito que o senhor "endoidou". O João respondeu a única possível: "Quem deve um pedido de desculpas é o Presidente da República, que quinta-feira insultou os portugueses, a democracia e o 25 de Abril de 1974. O que fez na quinta-feira no Parlamento foi de uma enorme gravidade, porque no dia em que se celebra a libertação de um povo de uma ditadura, em que se celebra a soberania democrática e liberdade, o mais alto magistrado da nação disse no Parlamento, a casa da democracia, que as eleições deixaram de ter qualquer relevância.".
não encontrei imagens de seguro a aplaudir cavaco, mas também não encontrei um desmentido seu às inúmeras notícias que afirmam que foi um dos únicos três deputados do ps que aplaudiu o inacreditável discurso de posse do pr, a 9 de março de 2011. aliás, atendendo ao que foi nos últimos dois anos a postura do líder do ps em geral e face ao pr em particular, com uma colagem óbvia e evitando qualquer crítica, não custa nada a crer que o tenha aplaudido então. e é tão bem feita.
(já agora: se seguro aplaudiu o discurso em que cavaco dizia que era preciso que os jovens fizessem ouvir a sua voz, não deve ser coerente e dar voz no congresso aos jovens que apresentam ideias novas para o partido? just saying).
O golpe de vista do Filipe Nunes alertou-me para o que sublinho (de uma notícia do i). A coisa seria hilariante se não fosse sintomática... as criaturas andam a passar tão bem a ideia de que não estão bem no governo - e, portanto, não têm responsabilidades na poliítica atual - que até já invadem o inconsciente de muitos. Como se prova por este lapsus dedae (mas agora já emendavam a notícia, não?)
Ouvi o discurso do Cavácuo hoje de manhã e, ao contrário de muita gente, não fiquei indignado nem rasguei vestes, nem deitei fumo pelas orelhas, nem me caiu o queixo (sim, o queixo, que este é um blog familiar) aos pés. Para isso, era necessário que alguma vez tivesse acreditado nas suas palavras, que em alguma ocasião lhe tivesse confiado o voto, que algum dia houvesse merecido a minha confiança. Para haver desilusão é preciso ilusão prévia e este cavalheiro, oh meus amigos, nunca me enganou. O político por excelência que se diz acima dos políticos, o manipulador que quer fazer crer que não tem dedidos nem fios, nem redes nem teias, o mestre em intriga de bastidor que se arroga de impolutas credenciais. Podia manter-se no perfil esfíngico, que um bibelot de estante não faz grande mal. Mas desde a incrível novela das "escutas de S. Bento", da colossal cara-de-pau da comunicação em direto ao país que se lhe seguiu, oh para mim bastou.
Portanto, não constituiu grande surpresa o teor do discurso de hoje. Houve tempos em que Cavácuo se mostrava assaz preocupado com os efeitos da austeridade nos portugueses e que dizia que havia limites. Eram outros tempos, evidentemente. Hoje são outros. O discurso tem, contudo, coisas interessantes. Uma delas é a redundância de conceitos ocos que não querem dizer nada, uma espécie de saco cheio de coisa nenhuma, um chouriço de vento. Exemplos: 1. Diz que o governo "se viu na contingência de reconhecer o inadiável". Bom, se era contingência, não era inadiável, se era inadiável, não era contingência, era inevitabilidade; e um inadiável executa-se, aplica-se, realiza-se, não se reconhece. 2. Depois, fala em "objetivos alcançados" por este governo: "Entre esses objetivos, importa destacar o equilíbrio das contas externas, um resultado que não era atingido desde há muito"; que bom termos contas externas equilibradas. No dia em que houver importações zero por destruição completa da economia, em que acabemos todos a cavar batatas, Cavácuo entrará em órbita eufórica. Não há mais "objetivos alcançados" ou "sucessos"? Pena, é pouco para amostra. 3. Demonstra uma inacreditável insensibilidade. Lê-se e não se acredita: "O efeito recessivo das medidas de austeridade inicialmente estabelecidas revelou-se superior ao previsto, provavelmente por falhas nas estimativas". Entenda-se: não foi o governo que falhou, o projeto que falhou, a política que falhou, o rumo e as (miraculosas) soluções de austeridade além da troika, rapidamente, a doer e em força, que falharam. Nada Disso. Foram apenas "as estimativas", coisa pouca, e sem certezas, apenas "provavelmente". 4. Por fim, um insuportável vernáculo de economistês. Um Presidente da República que, na data mais importante da democracia e em tempos de crise, é incapaz de dirigir aos seus concidadãos palavras de esperança, de confiança e de coragem e que, em vez disso, se atulha em "rácios de solvabilidade", "desalavancagem dos bancos", "défice primário estrutural", "pacotes normativos «six-pack» e «two-pack»" ou "rácio da dívida pública", não é um Presidente, é uma grafonola que debita chavões vazios. Vazios. No final, lá vem o choradinho da Europa. Afinal Portugal é vulnerável ao exterior e muito sujeito aos caprichos. Engraçado. Julgava que a culpa era dos governos incapazes (pelo menos, o anterior) e que não se devia hostilizar as agências de rating e muito menos "os mercados".
A abrir e a encerrar, a lata suprema: falar em "extrair lições da História" - gostava de saber quem as daria; ele? não me façam rir, que o momento é sério - e no "sonho nascido em abril de 1974". Ora bolas, como diria o poeta, o Cavácuo não sabe, nem sonha o que isso foi e o que isso é.