Creio que o melhor modo de explicar a inconstitucionalidade continua a ser aquele que se utiliza nas escolas de Direito: a inconstitucionalidade é um vício. Ela resulta de uma desconformidade entre algo que o legislador decidiu fazer aprovar como lei ordinária e algo que a Constituição prevê. Tratando-se de uma desconformidade quanto a modos de organizarmos as nossas vidas essa desconformidade - esse vício - pode ser denominado de inconstitucionalidade material. É um vício em que o Governo e a Assembleia da República podem incorrer. E que cabe ao Tribunal Constitucional diagnosticar e oferecer terapêutica. Nos termos da lei.
Evidentemente, quem é viciado é que tem de se curar do vício, não é o resto do mundo que tem que arranjar uma alternativa para o manter.
O PSD e o Governo não entendem isto. É difícil para eles compreender a elementar mecânica da inconstitucionalidade, do juízo de inconstitucionalidade e, sobretudo, da responsabilidade de sanação da inconstitucionalidade. O Governo e o PSD não compreendem o próprio sistema que, supostamente, deviam servir. Para eles, é o sistema democrático e o Estado de Direito que deve estar ao serviço do Governo e do PSD. Não é o Governo que deve evitar ou corrigir leis inconstitucionais, são os outros que devem oferecer-lhe a constitucionalidade que ele não conseguiu atingir.
E, já agora, recuperemos a lição de Jorge Miranda sobre o papel supremo do Tribunal Constitucional:
"Quis custodiet custodes? A resposta há-de procurar-se no rigor dos seus juízes, na capacidade para encontrarem a síntese das suas diferentes formações e precompreensões, no seu apego ao princípio da legimitidade em que se esteia o Tribunal. Há-de procurar-se também na consciência jusconstitucionalística da comunidade, em interacção e diálogo com eles. E ainda na apreciação crítica da doutrina especializada".
Se querem um mundo diferente, comecem por rever a Constituição. Ou, talvez mais simples, cumpra-na.
1. Ela é condenada por ter "acusado indevidamente" agentes da PJ durante um interrogatório. "Informações contraditórias" e "falsas declarações". ok.
2. Um dos senhores que foram, portanto, injustamente acusados (de agressão, por ela) foi condenado por "falsidade de depoimento". Outro, por "falsificação de documento"; dois foram absolvidos. ok.
3. Contudo, o tribunal deu como provadas as agressões, mas não conseguiu identificar os agressores. Presumo que cada murro devia estar assinado, talvez.
Vamos ver se alguém me explica. Ela foi agredida durante os interrogatórios (abstenho-me de especificar se foi "torturada" ou "acariciada", as fotos - e o tribunal - são suficientes), mas como não conseguiu provar quem deu os murros e de quem são os pontapés (admitindo que não tenha havido instrumentos), nenhum dos agentes foi penalizado? Tudo se limita ao teor contraditório das declarações? Desconheço o acórdão, mas suponho que quem leve uma carga de porrada num interrogatório estará naturalmente sujeito a "contradições". Ou seja, os senhores são absolvidos ou levam pena suspensa, mas não por terem agredido. Ela apanha mais mais 7 meses por os ter acusado. "Indevidamente"? Como, "indevidamente"?
Moral da história: se algum dia for espancado(a) numa esquadra, não se esqueça de obter prova fotográfica do evento e depoimentos devidamente certificados por notário, se possível, com testemunhas ajuramentadas e credíveis. Melhor ainda, tente que os autores o declarem no momento, por escrito, e que o assinem. Caso não consiga, bom, sempre pode dizer que foi contra uma porta ou que caiu da escada. Sempre funcionou em casos de violência doméstica, certamente que funcionará numa situação destas. E já agora: ninguém pensou que as agressões (as tais sem autor, caídas do céu, quiçá por justiça divina) possam ter inquinado tudo, desde a investigação ao processo que a levou à cadeia, não? ah todos acham que é "bem feita", certo?
Tem um sabor especial nos tempos actuais, comemorar esse dia de Abril de 1976, em que foi aprovada a primeira Constituição portuguesa de Estado de Direito democrático, e não por acaso de Estado Social.
Através do Público, descubro que as Provas de Língua Portuguesa, obrigatórias para Aquisição de Nacionalidade Portuguesa, estão suspensas pelo menos desde Abril de 2012. Um ano depois o governo alterou a Lei, aumentando a participação do SEF, para garantir, dizem, mais "transparência e rigor" (sugiro, desde logo, que continuem a publicar as provas e respectivos resultados, como se fazia até 2010).
Não sei o que é mais extraordinário, se a suspensão durante um ano de uma Prova que o Estado português tornou obrigatória, se a justificação dada por um membro do governo para a alteração da Lei: "Creio que havia fraudes. Nunca percebi bem se era nas provas ou certificados das provas”. É prometedor, um legislador que tenta resolver um problema sem nunca o ter percebido bem.
Nunca deixo de me espantar com a facilidade com que, com os governos do PSD, as coisas correntes deixam de funcionar no Ministério da Educação.
ontem, vi pela primeira vez no twitter menções a uma foto de merkel nua. não abri os linques. hoje quando abri o facebook a primeira coisa que vi foi a foto; alguém que parece merkel aos 17 ou 20 anos com outras duas mulheres igualmente jovens numa praia, as três a fazer nudismo. e os comentários: se a mamas são assim ou assado, se até era comestível quando nova, se assim até parece 'humana', se já se notava a marreca, se nos quer deixar também em pelota.
quando protestei contra a difusão da foto, cuja origem ninguém aparentemente conhece, no twitter, e sobre a qual não se sabe sequer a natureza -- foto 'verdadeira' ou montagem ou de alguém parecido com a chanceler? 'pública', que a própria aprovou para difusão numa qualquer ocasião, ou foto privada agora divulgada sem autorização das fotografadas? --, e por, independente dessa natureza, a partilha da imagem ser feita como ataque político e numa perspectiva claramente machista (pelo tipo de comentários que a acompanha), deparei-me com acusações de moralismo, 'feminismo radical' e 'excesso de defesa da privacidade'. (vá lá que ninguém se lembrou de dizer que estava furiosa por ser uma partidária de merkel).
houve quem me dissesse 'a carla bruni também tem fotos nua' ou ainda 'isto até é bom para ela porque mostra que em tempos foi gira'; 'a foto até é bonita'; 'não tem mal porque na rda o nudismo era uma coisa normal' e quem perguntasse 'se ela estivesse vestida, também invocavas o direito à privacidade?' e 'porque te ralas só com a merkel, então e as outras duas mulheres?'.
confesso que, apesar de estar razoavelmente habituada a que os valores da privacidade e do direito à imagem sejam completamente desprezados (para não falar do da igualdade), fui surpreendida por alguns destes 'argumentos'. sobretudo por virem de gente que costuma vocalmente desaprovar perseguições e ataques à vida privada de outros políticos e critica as práticas, por exemplo, do correio da manhã.
por partes:
achar que alguém que protesta contra a difusão desta imagem o faz por desaprovar ou se chocar com a nudez ou o nudismo, e, mais, achar que poderia ser o meu caso, é de gargalhada.
comparar esta foto, sem lhe conhecer a origem e estatuto, com fotos de modelo, de sessão profissional, como as de bruni, é idiota.
dizer que a foto é bonita é irrelevante, como contextualizá-la historicamente: o nudismo é praticado em todo o lado há décadas, como a imagem de nu é difundida há séculos; que interessa isso para o caso?
por fim, considerar que o facto de me deter em merkel (porque obviamente a foto é difundida por causa dela) significa que não quero saber das outras e sustentar que só invoco a questão do direito à imagem e à privacidade por a mulher estar nua é difícil de qualificar de outra forma que não desespero argumentativo.
como deveria ser evidente para toda a gente (e será se se colocarem, por um micro-segundo, no lugar de alguém cuja imagem é captada sem seu conhecimento ou para um determinado efeito privado e divulgada sem sua autorização, e mais ainda se se tratar de uma imagem de nu), é inadmissível partilhar-se uma imagem destas sem lhe conhecer a origem.
como deve ser evidente para toda a gente, se me fotografarem vestida a atravessar a rua e publicarem a foto sem minha autorização, estão a violar o meu direito à imagem. se o fizerem na praia, comigo de bikini, de monokini ou nua a violação é mais grave porque o grau de exposição a que estou sujeita e o tipo de atenção e comentários que essa exposição suscitará serão com toda a certeza mais invasivos. e não é por os comentários serem todos ou predominantemente 'elogiosos' que essa invasão deixa de existir: a crítica ao corpo de alguém que não se quis expor a essa crítica é sempre uma invasão e uma agressão, e se for pública é-o incomensuravelmente mais.
não é por acaso que a exposição da nudez é usada na tortura. ou, se quiserem um exemplo menos extremo, que de um modo geral os nudistas vêem os não nudistas como voyeurs: porque existe uma convenção de poder na observação do outro nu quando estamos vestidos.
se tudo isto se aplica às outras mulheres retratadas? claro. mas o nível de intrusão não é comparável porque não sabemos quem são, e porque o alvo da difusão é merkel.
o facto de invariavelmente qualquer mulher que se exponha publicamente, na política ou noutra área qualquer, ser antes de mais apreciada pelas suas qualidades físicas, independentemente de quaisquer outras, é de um inegável e muito eficaz machismo: muitas mulheres não se atrevem a aceder à esfera pública porque não estão dispostas a lidar com esse implacável escrutínio. usar a imagem de uma mulher 'pública' nua da forma como a de merkel foi usada é não só machista como um acto de ódio político, com o intuito de escarnecer dela, de a diminuir, de a humilhar. negar isto é impossível -- mesmo se, constato, tanta gente o faz.
vou mais longe: se amanhã merkel disser que deu autorização para a difusão da foto continuarei a achar indigna a motivação da partilha. por um motivo simples: se deu autorização para a difusão, merkel não o fez enquanto política, até porque, na altura, não tinha esse estatuto, e porque a foto nada tem a ver com política. poderia surgir numa biografia, num perfil da chanceler, num artigo sobre nudismo. não pode ser usada como forma de combate político.
o que subjaz à difusão viral desta foto é ódio -- quer na sua manifestação tão comum da objectificação dos 'famosos' e mais ainda dos políticos (que lhes retira o estatuto de pessoas e portanto todos os direitos que as pessoas se atribuem e reivindicam para si, a começar pelo direito a que lhes reconheçam sentimentos) quer na mais virulenta do combate pessoalizado, ad hominem, que visa destruir, desabilitar, o alvo.
não chega dizer que merkel é má política, que está a destruir a ue e a europa com as suas decisões estultas, moralistas e imperiais: temos também de comentar os seus pêlos púbicos, as mamas, as coxas, e se algum dia foi uma brasa em oposição ao camafeu que é hoje?
porra, é uma miúda feliz na praia, há mais de trinta anos. se é ela. deixem a miúda em paz: o nosso problema não é com ela. o nosso problema não é sequer com a pessoa merkel: é com o poder que tem, e que a deixamos ter. expor-lhe e discutir-lhe o corpo é só mais um sinal da nossa impotência.