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jugular

torrar os miolos

Proponho solidariedade para quem esmifra os neurónios. Uma grande campanha nacional, mundial. Não para quem o faz por coisas banais, como diminuir o sofrimento alheio, ajudar o próximo, combater a desigualdade, matar a fome, promover a paz, desenvolver a ciência, aprofundar o conhecimento. Isso, como disse recentemente um intugalectual, são peaners. São coisas simples, fáceis, ao alcance de qualquer pobre de espírito. Não. A minha solidariedade, o meu mais profundo respeito e admiração, e no qual sou decerto acompanhado por muitos, por milhões, vai para aqueles espíritos elevados, superiores, intelectualmente sublimes e espiritualmente  iluminados, que sacrificam o seu tempo e dedicam o seu esforço a tarefas muito mais importantes. Por exemplo, sacar dinheiro ao próximo. Não é "roubar" grosseiramente, como um vulgar ladrão. É procurar uma forma inteligente, refinada, politicamente justificada, para nos ir ao bolso. Nós, os grunhos, agradecemos a atenção que nos dedicam os espíritos superiores, sempre a pensar no nosso interesse e no bem danação.

De que falo? Da proposta de Teodora Cardoso nas jornadas parlamentares do PSD: taxar os levantamentos bancários. As pessoas, até ver, recebem o seu salário em numerário, não em iogurtes, vales Continente, senhas Pingo Doce ou rolhas de cortiça. Esse numerário é depositado numa conta. Logo aí, percebe-se, fica cativo. "Este imposto consistiria nos rendimentos das pessoas, seja trabalho ou capital, quaisquer rendimentos, serem pagos a uma conta bancária de poupança. Seria sobre os levantamentos dessa conta que indiciaria o imposto, com o pressuposto que só levantaríamos dinheiro dessa conta para gastar". Entende-se a lógica, simples e eficaz: dinheirinho bom é o dinheirinho que fica quieto na conta - eventualmente, para ser confiscado pelo Estado em caso de necessidade - ou o dinheirinho usado para pagar impostos. O outro, aquele que se usa para pagar despesas, alimentação, rendas, vestir e calçar, luz e água, medicamentos e educação, é dinheirinho livre, suspeito, potencialmente subversivo, que se mexe sem rasto e que o fisco não sabe para onde vai. O que se gasta em débitos diretos ainda pode ser controlado, vigiado, taxado. Mas e as notas, Senhor, as notas? Tantas a circular de bolso em bolso, assim, sem mais? Não pode ser. É melhor meter-lhe logo uma taxa a montante. Levantas dinheiro, zás, pagas taxa, seu perdulário. Não fiques assim, é para teu bem, é no teu interesse, é para estimular-te a poupança.

romancing the interview: a teoria da entrevista como mascarada e do jornalista como agente provocador, por josé rodrigues dos santos

josé sócrates tem um espaço de comentário na rtp1, para o qual foi convidado pela estação. nesse espaço, semelhante ao de muitos outros políticos -- as tv portuguesas têm esta particularidade, a de privilegiar o comentário político de políticos --, um jornalista conduz o programa, introduzindo temas e fazendo uma ou outra pergunta, mas quem na verdade dirige o espaço e define temas e tempos é o comentador. de tal modo que já aconteceu vermos comentadores a dizerem coisas que toda a gente sabe que são falsas -- como marcelo a imputar ao governo de sócrates o corte de meio subsídio de natal, em 2011 -- e o pivot, em vez de contrariar de imediato, dizer algo do género 'ó professor, por acaso tinha outra ideia'.

 

é claro que, como espectadora e como jornalista, há questões que me parece obrigatório colocar perante aquilo que me surge como um erro ou uma contradição de um comentador que tem um histórico político/público, e várias vezes me senti frustrada ao ver que o pivot/jornalista não o faz. mas decerto não espero que o espaço de comentário 'assinado' por uma determinada pessoa (qualquer que esse pessoa seja) seja transformado numa entrevista. e não espero porquê? por um motivo simples: porque há um formato estipulado, e estipulado pelo próprio canal, e não faz qualquer sentido, por uma questão básica de lealdade e lisura, subvertê-lo -- a não ser que a ideia seja acabar com o formato, e nesse caso haverá formas mais lisas de resolver o assunto.

 

imagine-se, por exemplo, que no quadratura do círculo carlos andrade resolvia 'entrevistar' costa sobre o seu consulado como presidente da câmara ou pacheco pereira sobre o tudo e o seu contrário que já defendeu desde que a gente o conhece. ou ana lourenço virar-se para louçã e começar a interpelá-lo sobre o be pós dito, a solução bicéfala que lá impôs, etc, em vez de o ouvir sobre os temas que este preparou para o comentário? ou maria joão ruela confrontar marques mendes com as críticas que fez à linha de redução do défice do governo de sócrates, quando agora é todo austeritário, e levar um dossier de declarações dele de quando foi presidente do psd e levar o tempo todo a citar-lhas? toda a gente acharia estapafúrdio e sem sentido, não era? 

 

porém, pelos vistos, quando se trata de sócrates as regras que se aplicam a todos os outros não se aplicam. a rtp já veio manifestar-se 'em defesa' do seu pivot -- sem uma palavra para o seu comentador convidado, o que se regista, tanto mais que como é público e notório não lhe paga por opção deste, o que deveria em princípio ser visto como uma generosidade do mesmo a merecer reconhecimento e não tal ostensiva deselegância -- e o próprio rodrigues dos santos se 'justifica' no fb

 

começando pela rtp: a estação diz que 'o espaço não é só de comentário'. ora bem, convinha então explicar porque é que se chama 'a opinião de josé sócrates' e que está lá a fazer a assinatura dele (se calhar a rtp não reparou que a tinha lá posto e que com isso está a dizer que se trata de um espaço assinado, ou seja, 'com dono', como qualquer coluna de opinião num jornal). e que é que aquele espaço é além de ser de comentário/opinião, não quererão esclarecer? e por que raio só ao fim de um ano se colocou a questão, para a qual a estação parece ter acordado agora mesmo, e em relação a todos os comentadores/políticos, já que menciona também morais sarmento? vai transformar os comentários em entrevistas? entrevistas semanais? sério? e com temas à desgarrada, conforme o jornalista que calhar? ou numa semana é comentário e na outra semana, mudando o jornalista, é entrevista? dá ideia de que a rtp não pensou muito no assunto, não é? 

 

mas vamos a rodrigues dos santos. começa por afirmar que 'a isenção do jornalista não é obrigatória'. ainda mal nos tinhamos levantado do natural trambolhão da cadeira que esta frase ocasiona, já demos outro quando rodrigues dos santos exemplifica com o avante: 'Não faz sentido esperar que um jornalista do «Avante!», por exemplo, seja isento. A linha editorial do «Avante!» é claramente comunista e um jornalista que não a queira respeitar tem a opção de se ir embora. Há muitos casos que se podem encontrar de linhas editoriais que implicam alinhamentos (partidários, desportivos, ideológicos, etc).'

 

dá-se o caso de no artigo 14º do estatuto de jornalista (lei que rege a actividade dos jornalistas) se ler esta coisa: 'constituem deveres fundamentais dos jornalistas: a) Informar com rigor e isenção, rejeitando o sensacionalismo e demarcando claramente os factos da opinião.'

 

tem rodrigues dos santos motivo para estar confuso, como todos nós, ao constatar que apesar deste preceito legal tão claro publicações como o avante, ou canais como o benfica tv, são consideradas jornalísticas, empregam jornalistas e até os 'fabricam'. é um problema e um escândalo e deviamos estar todos empenhados em resolvê-lo, a bem do jornalismo. mas parece que há quem, como rodrigues dos santos, considere que é uma coisa, vá, natural: se és jornalista num jornal comunista ou numa tv do benfica, 'informas' com o objectivo de deformar (ou seja, de apresentar tudo numa luz favorável à militância/clubismo, ignorando o que não dá jeito, etc), e não há problema nenhum.

 

mas, vá lá, rodrigues dos santos diz que 'No caso da RTP, a linha editorial é de isenção.' menos mal. porém, logo de seguida, avisa-nos que 'nas entrevistas a isenção pode perder-se'. porquê? ora, por causa do profissionalismo do entrevistador. ora leiam: 'Nas entrevistas, no entanto, as regras podem mudar. Há dois tipos de entrevista: a confrontacional (normalmente a entrevista política) e a não confrontacional. Em ambos os casos a isenção pode perder-se, não porque o entrevistador seja pouco profissional, mas justamente porque é profissional.' dá o exemplo da vítima de violação e do violador (com o pormenor delicioso de tornar claro que acha que só mulheres podem ser violadas): não se tratam da mesma forma. uau -  a isto chama ele perder a isenção? enfim.

 

da violação e do genocídio, sem sequer uma paragem na banca, passa para a política: 'As entrevistas políticas são, por natureza, confrontacionais (estranho seria que não fossem e que jornalista e político tivessem uma relação de cumplicidade). Uma vez que o agente político que está a falar não tem ninguém de outra força política que lhe faça o contraditório (como aconteceria num debate), essa função é assumida pelo entrevistador. O entrevistador faz o contraditório, assume o papel de advogado do diabo. Portanto, o jornalista suspende por momentos a sua isenção para questionar o entrevistado.'

 

nesta altura dos acontecimentos, suponho que é natural que me questione sobre que raio acha rodrigues dos santos que é 'isenção'. é que esta ideia de que tem de fazer o papel de representante 'da outra força política' para 'fazer o contraditório' leva a crer que não percebe que o papel do jornalista é sempre o de colocar as perguntas que se impõem (de acordo com a informação que este deve ter/recolher sobre assunto/pessoa), independentemente de quem está à sua frente ser um político desta ou daquela força política, um acusado de genocídio, um banqueiro ou uma pessoa que foi vítima de violência. a ideia de que perante um político tem de vestir a pele dos seus opositores é ridícula: tem, isso sim, de fazer as perguntas que há a fazer, e isso não significa jamais perder a isenção -- a não ser que efectivamente envergue a camisola de um opositor, caso em que não só perde a isenção como a vergonha.

 

prossegue rodrigues dos santos, ainda mais claro no absurdo: 'Portanto, o jornalista suspende por momentos a sua isenção para questionar o entrevistado. Isto é uma prática absolutamente normal. O entrevistador não o faz para "atacar" o entrevistado, mas simplesmente para fazer o contraditório. Acontece até frequentemente fazer perguntas com as quais não concorda, mas sabe que o seu papel é fazer de "oposição" ao entrevistado.' eis o busílis no seu esplendor: rodrigues dos santos acha que um bom entrevistador, perante um político, deve transmutar-se em opositor político -- mascarar-se, portanto. ou seja, usar a propaganda e os argumentos dos opositores daquele político para o 'confrontar', em vez de fazer perguntas fundadas na realidade e na sua apreciação (porque, obviamente, um jornalista tem sempre um olhar subjectivo) da mesma. 

 

ao contrário do que rodrigues dos santos afirma, fazer uma entrevista confrontacional, ou seja, aguerrida, não é 'perder a isenção'. perder a isenção é precisamente o que rodrigues dos santos diz que deve ser uma entrevista a um político: assumir o discurso de outros. exemplo: uma pergunta não isenta é aquela que confrontasse sócrates com a subida do défice entre 2005 e 2010 (que é um clássico dos discursos do psd e cds), quando entre 2005 e 2008 o défice desceu notavelmente. uma pergunta isenta jamais poderá ignorar que nesse período de cinco anos existe uma descida do défice até à eclosão da crise, ou que na chamada 'década perdida' houve um período de crescimento. quem a faça ignorando a realidade está, de facto, a fazer propaganda e não jornalismo.

 

ora, como deve (deveria?) ser óbvio, o papel de um jornalista não é embarcar em propagandas, nem na do entrevistado nem da dos seus opositores, nem mascarar-se de 'opositor', como advoga rodrigues dos santos: é informar-se o melhor possível sobre os factos e basear neles as suas perguntas. e caso queira dar ao entrevistado oportunidade de responder às acusações dos seus oponentes, citá-las: 'x ou y acusam-no disto ou daquilo'. 

 

felizmente, a prática de rodrigues dos santos é muito melhor que a sua teoria, e de um modo geral as perguntas que fez a sócrates no domingo estavam ancoradas em afirmações ou actuações daquele enquanto pm. algumas foram muito bem metidas e fazem todo o sentido, e deveriam até ter sido feitas antes pelos anteriores pivots do espaço: eu tê-las-ia feito. contam-se entre essas a sobre a austeridade -- foi sócrates que começou a aplicá-la e portanto faz sentido confrontá-lo com isso e perguntar-lhe se está arrependido de ter assumido tão plenamente o discurso de merkel/sarkozy e a inopinada inversão da estratégia europeia em 2010 -- e a sobre os cortes dos salários dos funcionários públicos (que foi o seu governo a inaugurar, no orçamento de 2011), entre outras. acho que esse tipo de confrontação melhoraria o programa, neste caso como em todos os outros em que responsáveis políticos (tenham ou não sido responsáveis governativos) pontuam.

 

acho também que fazer essas perguntas não é incompatível com o espaço de comentário/opinião que sócrates tem. mas uma coisa é fazer uma ou duas perguntas a propósito de uma afirmação, outra transformar um espaço que é pelo canal intitulado de 'a opinião de josé sócrates' numa entrevista -- transformação que rodrigues dos santos, na sua 'explicação', assume completamente, desde o título da mesma -- 'RESPOSTA DE JOSÉ RODRIGUES DOS SANTOS AOS COMENTÁRIOS PUBLICADOS NESTA PÁGINA À ENTREVISTA FEITA PELO JORNALISTA A JOSÉ SÓCRATES, NO DOMINGO, DIA 23 DE MARÇO DE 2014, NA RTP1' -- a toda a argumentação sobre o que deve ser uma entrevista e qual o papel que o entrevistador deve assumir, até à parte em que fala do 'entrevistado' concreto. 

 

rodrigues dos santos acha -- e a rtp pelos vistos também -- que faz sentido fazer uma entrevista a sócrates? peçam-na e ponham-na no ar. querem entrevistá-lo todas as semanas? bom, é criar outro formato. agora, usar um espaço em que o convidaram para opinar e transformá-lo em entrevista é no mínimo feio e mal educado e no máximo suspeito; é uma mascarada. não é preciso pensar muito para perceber que assim é: se me convidarem para ir ao opinião pública de uma estação para opinar sobre o pelâme nas axilas da madonna, por hipótese, e quando me apanharem lá me entrevistarem sobre os livros que publiquei ou sobre o meu activismo pelos direitos humanos posso estar à vontade para responder e até achar bem mais interessante mas terei de manifestar surpresa por me terem trocado as voltas e questionar-me sobre o intuito desse engano premeditado.  

 

uma última nota: fui alertada para esta polémica por uma notícia que titula 'josé sócrates irrita-se', e, curiosa, fui ver o programa. para meu espanto, atendendo a que sócrates é notoriamente irritável, constatei com surpresa que pelo contrário, não só não se irritou como até usou várias vezes da ironia, recurso que não lhe era costumeiro e que evidencia uma evolução que aplaudo. e quando diz 'não vim preparado para isto' refere-se a não estar municiado com dados em relação a uma pergunta específica, e não à 'linha' adoptada pelo pivot, como várias notícias dão, capciosamente, a entender. aliás, não fez qualquer reparo a rodrigues dos santos quanto à perversão do formato, o que foi pena, porque seria interessante que este se tivesse explicado ali, em vez de fazer testamentos patéticos no fb.

 

já agora, concordo com a penélope: sócrates saiu-se muito bem nas respostas, evidenciando uma capacidade de encaixe e de réplica inegáveis -- costumeira a segunda, muito menos a primeira. 

Sobre Síndrome de Alienação Parental

Acabei de tomar conhecimento, através da Clara Sottomayor no FB, desta posição da Associação Espanhola de Neuropsiquiatria sobre o Síndrome de Alienação Parental (SAP). Posição séria e bem sustentada que gostaria de ver replicada por entidades nacionais com responsabilidades nas áreas clínicas e judiciais e repesco o que já aqui escrevi sobre o SAP.

 

Com demasiada frequência as crianças são usadas como arma de arremesso nos conflitos decorrentes de um processo de separação e, na maioria dos casos, o progenitor "alienado" é o pai. Por efeito boomerang do machismo vigente? Por maior eficácia manipuladora das mães? Pela pouca atenção que tem sido dada ao exercício efectivo da paternidade? Estou tentada a afirmar que pela miscelânea de todos estes, e mais uns quantos, factores que, deste modo, se configuram como etiopatogénicos.

 

O SAP é um conceito de autor, proposto por Richard Gardner nos idos anos 80 que nunca foi sustentado como diagnóstico independente. A definição de uma entidade nosológica obedece a um conjunto de regras metodológicas que permitem a sua objectivação e individualização. Nenhum dos dois instrumentos classificativos internacionais usados em psiquiatria, ICD 10 e DSM 5, lhe confere identidade própria, nem o refere como um sub-tipo das categorias diagnósticas listadas. Faço notar que qualquer inovação classificativa é importante se acrescenta algo ao conhecimento prévio, nomeadamente no que se refere à necessidade e maior eficácia de uma abordagem terapêutica distinta.

 

Como ouvi a Rui Mota Cardoso aqui há uns anos num seminário intitulado "Inventem-se novas doenças?", a sistematização nosológica não pode nunca ter por base as necessidades narcísicas de uma qualquer escola de medicina nem os interesses socio-políticos de uma sociedade.

 

O dito SAP tem sido amplamente discutido e há já uma considerável bibliografia sobre o tema. A escolha das duas referências que aqui deixo foi feita no sentido de "recentrar" a discussão, indo às origens, e de assinalar a existência de abordagens recentes do fenómeno de alienação parental, mais "razoáveis", úteis e defensáveis em termos conceptuais e clínicos.

 

 

viva a coltura (perdão, kultura)

O Palácio Nacional de Sintra é um belo palácio. Não é por ser da minha terra. É mesmo. O meu preferido. Feito de vários pedaços e peças, de épocas diferentes, com fragmentos de História em cada esquina, nacos incompletos, episódios misteriosos, tudo justaposto num edifício labiríntico de memórias diversas. Não gosto da monstruosidade monumental e unívoca do convento de Mafra, desagrada-me a artificialidade da Pena, não simpatizo muito com Ajudas, Vilas Viçosas ou Queluzes. O Palácio da Vila é toda a História de Portugal num pedaço. D. João I, Duarte d'Armas, D. Duarte, D. João II, D. Manuel, D. Sebastião, Camões, D. Afonso VI, D. Pedro II, D. Amélia, e mais e mais, estão lá. Sintra é o Palácio. O resto é paisagem. Hoje regressei. Não entrava ali desde a quadra natalícia de 1988, quando o professor mais exigente que alguma vez tive me atribuiu como tema para um ensaio "o quotidiano do Palácio de Sintra no séc. XVIII". Disse-me o próprio, mais tarde, que fiquei a dever a nota final da cadeira a este trabalho, e não ao exame final. Há dívidas que nunca se pagam.

Quem hoje visita o Palácio tem sorte. Ou pode ter azar. Depende. Eu sou munícipe, tenho entrada gratuita aos domingos de manhã. Quem não é, azar o dele. Turista japonês ou concidadão residente em Lisboa, na Amadora ou na Ilha do Corvo paga o mesmo. A doer: 8,5 € pelo direito a percorrer os corredores do edifício. Sem guia. Para isso há um extra (5 €, salvo erro). Jovens até aos 18 anos pagam 7 €. Um roubo. Uma espoliação a todos, nacionais e estrangeiros. Imaginemos uma família, dois adultos e dois adolescentes. Tudo somado, uma entradinha para os quatro ficará, portanto, por 31 €? Não, que disparate. Para elevar a cultura dos bárbaros que visitam a nossa bela terra, existe um "bilhete familiar". Que bom é poupar. E quanto é? Redução de 50%? Quase, quase, mais exatamente, 3,22 %, ou seja, desconto de 1 €. Tcharan! 30 €, que magnífica oportunidade. Nem sei como não há magotes familiares a acotovelar-se à entrada. Ou, se calhar, terá algo a ver com o facto de só ter ouvido falar alemão, inglês e chinês quando lá estive, hoje.

Por acaso, é mentira. Também ouvi português, porque meti-me à pendura de uma visita de estudo escolar. Os putos não são tolos (embora muitos os queiram fazer de tal coisa). Sabem que neste horário é de borla, portanto, convenceram o stor a marcar hoje. Que, aliás, desabafava que é mesmo preciso fazer estes exercícios de imaginação, porque acabaram-se as visitas escolares gratuitas. Os jovens das escolas de Sintra pagam 3 € para visitarem o ex-libris do concelho. Os de fora, quem sabe? Na verdade, quem quer saber? Desde que renda, é o que importa, não é verdade?

do princípio ao fim

Na semana passada, após o chumbo da coadoção, Twitter e Facebook encheram-se de "revelações" sobre a orientação sexual de políticos dos partidos da maioria. Entre os fautores desses outings (exposição pública e forçada) esteve um ex-vice da JSD, Carlos Reis, justificando: "Lamento ter de o denunciar: não me dá prazer nenhum, antes pelo contrário - só me arranja chatices. Mas isto é uma batalha pelos direitos cívicos (...). Quanto a questões técnico-legais: chamar homossexual ou lésbica a alguém não é um insulto. Se o não forem (...) bastará que o atingido o desminta e quem o disse incorrerá em acusação de difamação."

 

Não foi surpreendente o que sucedeu - tendo em conta que a batalha política pelos direitos dos homossexuais dura, por cá, há 20 anos, surpresa é não ter sucedido antes - nem que os media tenham ignorado ou apenas mencionado o assunto ao de leve. Por respeito para com a esfera íntima dos mencionados, dir-se-á, o que seria muito bom sinal e manifestaria o entendimento, correto, de que ao contrário do que Reis (iniquamente) diz não "basta" desmentir: o dano está em obrigar alguém a ser confrontado em público com matérias da sua privacidade que entende manter privadas. Mas fosse respeito a razão e não assistiríamos nos media a outings de relações (heterossexuais) sobre as quais os supostos intervenientes recusam falar - outings a que a própria Comissão da Carteira de Jornalistas já deu o aval, considerando que a vida privada pode ser matéria de escrutínio e exposição caso "haja conflito de interesses".

 

Conflito de interesses é algo muito lato - abarcando quiçá uma alegada contradição entre ser homossexual e combater os direitos dos homossexuais (podendo aventar-se que o homossexual o faz para escamotear a sua condição, portanto para "mentir"). Por que será, então, que os media portugueses, exceção feita ao extinto Crime e ao caso Sócrates nas legislativas de 2005, evitam qualquer menção ou inquirição sobre alegadas homossexualidades, quando não sejam os próprios a assumi-la? Pelo mesmo motivo pelo qual nunca um jornal ou TV fez esperas à porta do Elefante Branco, a ver quantos "notáveis" aparecem, ou revelou relações "extraconjugais": a ideia de que há intimidades que se "justifica" "proteger" (manter em segredo, portanto) por serem consideradas "inconfessáveis" ou "vergonhosas", enquanto outras podem (devem?) ser expostas, "em nome da transparência", por "não terem mal nenhum".

 

Entendamo-nos: execro o outing. Mas o silêncio dos media sobre o assunto só a preconceito se deve, pelo que só pode ser entendido como encobrimento. Defender a vida privada implica preservar e respeitar todas as privacidades, não só algumas, de alguns. Para execrar o outing por princípio, é preciso ter princípios. E onde isso já vai.

 

(publicado ontem no dn)

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