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Departamentos Transversais e Centros de Competência

Num post recente voltei a um tema que há muito me ocupa a propósito da carta de Geoff Mulgan e de Stian Westlake dirigida ao futuro Primeiro-Ministro britânico: refiro-me aos Governos com estruturas em matriz por oposição aos governos com estruturas verticais em silos.

A preocupação com esta matéria permite várias análises distintas, mas há duas que são particularmente importantes. Os governos com estruturas em matriz permitem (i) maior flexibilidade ao Primeiro-Ministro para conduzir politicamente as políticas públicas que escolher e (ii) permitem criar centros de competência que, de forma mais eficiente, ajudam a assegurar aspetos transversais das políticas públicas, independentemente das áreas temáticas a que tais políticas públicas se dirijam. 

Quanto ao primeiro ponto, é para mim evidente que o próximo Primeiro-Ministro, pensando especialmente no secretário-geral do Partido Socialista, que tem apreço por este tipo de questões, deve reformular de modo inovador a estrutura clássica de governo. Se há momento histórico em que as circunstâncias o reclamam é este.

Quanto ao segundo ponto foi com grande satisfação que o vi referido no documento respeitante ao cenário macro-económico que enformará o Programa Eleitoral do PS. Aí, a páginas 68 a 70, propõe-se a criação de Centros de Competências muito semelhantes aos que encontramos noutras experiências governativas comparadas, como por exemplo os Governos Blair dos anos 90 e 2000, embora colocando a tónica mais no elemento técnico do que na combinação de técnica e de política. Esta combinação é, contudo, fundamental. As principais experiência de centros de competências - pelo menos daqueles que estiveram fortemente ligados ao sucesso de políticas públicas específicas - resultaram sempre de uma combinação institucional e relacional entre centros de competências e departamentos políticos transversais. Daí que a proposta de Centros de Competências que encontramos no documento "Uma Década para Portugal" deve ser vista com este enquadramento para maximizar a sua utilidade. 

Por outro lado, agradou-me o modelo institucional proposto e a proposta implícita de revisão da lei-quadro das fundações. Com efeito, na minha obra Fundações e Interesse Público (de 2012, publicada em 2014) critico a opção do legislador em transformar todas as fundações públicas (incluindo as de direito privado) em institutos públicos. Embora aí defenda que, em regra, as fundações públicas devam ser tratadas, quanto ao seu regime jurídico típico, como subespécies de institutos públicos, defendo igualmente que há duas situações em que as fundações públicas devem ter um regime jurídico distinto, mais flexível e modelado sobre o direito privado fundacional. Esses dois casos são:

a) fundações públicas empresa, como são o caso do INATEL e parcialmente do CCB, entre outras, que devem poder estar no mercado em igualdade de circunstância com outras fundações e empresas, sem prejuízo de um conjunto de regras públicas essenciais. Podemos aqui beneficiar das ricas experiências alemãs e italianas para dinamizar um setor que bem necessita; e

b) fundações públicas que integrem, mesmo que minoritariamente, fundadores privados, como elementos estratégicos quer a nível patrimonial, quer a nível de conhecimento. 

É justamente quanto a este último ponto que os Centros de Competência, sob a forma de fundações públicas, podiam integrar uma rede de instituições públicas, o mais das vezes resultantes até de instituições já existentes, flexíveis, altamente qualificadas, com património público delimitado à partida, e coordenadas por departamentos transversais. Ora, tudo isto está hoje proibido pela lei-quadro das fundações de 2012, algo incompreensível e só explicável por um preconceito e uma falta de estudo sobre estas matérias que levou a tentar curar uma unha negra com a amputação de um braço. Também por isso a solução institucional proposta para os Centros de Competência me parece muito interessantes.

 

Departamentos Transversais e Centros de Competência para liderança e execução de políticas públicas são fundamentais. Um exemplo apenas permitirá ilustrar a título conclusivo o que aqui se afirma: a área da planificação e avaliação de resultados de políticas públicas que permitam ao Estado executar políticas públicas por resultados sociais mensuráveis, existindo assim uma metodologia para aferir resultados e para comparar soluções para a sua execução. Um departamento transversal que politicamente se responsabilize por acompanhar o planeamento e a avaliação de certas políticas públicas fundamentais para o Primeiro-Ministro trabalhando com os clássicos ministérios e com um centro de competência que desenvolva métricas de planeamento e avaliação de resultados sociais desejados é um garante de melhor serviço público. Desde logo permitindo ao Estado escolher responsavelmente qual o meio mais eficiente para prosseguir certa política pública (diretamente através de um instituto, através de uma empresa pública, contratando fora, estabelecendo uma parceria instituciona com a criação de uma fundação participada por público e privado ou emitindo os novos títulos de impacto social, em que setor público fixa os resultados sociais pretendidos e o modo como os medirá e entidades sociais privadas propõem formas inovadoras de o conseguir dentro do orçamento público disponível). 

 

Este é apenas um exemplo das vantagens do Governo em matriz e dos Centros de Competência, que facilmente é replicado nas áreas da comunição com o cidadão, da formação de funcionários públicos e de desenvolvimento de serviços integrados e em rede, apenas para dar mais alguns exemplos fundamentais nos dias que correm.

 

(em estéreo com o Vermelho)

Portugal, Um Dia Destes

Tomei conhecimento, por via da crónica do Francisco Louçã, do que me parece ser o mais magnífico exemplo da originalidade intelectual portuguesa e a quem vaticino os maiores sucessos mediáticos, políticos e ribalteiros. Falo de Pedro Cosme Vieira, que reúne, num único molho, o toque de Midas lusitano: a) é alguém que não é "intelectual" - coisa próxima do insulto por cá - porque fala direto e barato, quero dizer, popularucho, diz bacoradas em barda, coisa que o aproxima da grunhice mas que, como diz na capa do seu livro, pretende ser "diferente e corajoso"; b) é economista, portanto, percebe daquilo que realmente interessa, que é o pilim; c) não é político, logo, não está metido em alhadas, não consta da lista negra do Paulo Morais ou do Marinho Pinto e não espreita moças avantajadas durante as horas de expediente; d) é "Professor da Faculdade de Economia etc", o que lhe confere aquela respeitabilidade - melhor dizendo, respeitinhabilidade - que herdámos do senhor Professor Oliveira Salazar e que o coloca uns degraus acima de outros "Professores", como o Carlos Queiroz ou o Bambo; e) serve de referência (como prova a crónica de Louçã) a políticos em ascensão, que o citam e seguem, como é o caso do mais brilhante fruto da grande árvore laranja, o grande ideólogo e pensador Duarte Marques. Tudo isto em shaker esplendoroso. O Camilo Lourenço que se cuide, o Pedro Arroja que arrume as botas, PCV chegou para vencer.

Leio comentários indignados acerca das expressões que utiliza no seu blog, os "barcos com pretalhada", etc. Meus amigos, não viram nada. Atualizem-se. Estão out. A crónica do Francisco Louçã é de ontem e refere-se a um post de qunta-feira. No domingo, o grande pensador produziu novo pedaço de prosa genial - é o mais recente até ao momento - cuja leitura recomendo vivamente. Nele, estão expostas as linhas mestras da quadratura do círculo: receber todos aqueles "desgraçados" que atravessam o Mediterrâneo e lucrar com isso, sob a égide do "português" David Ricardo. Como? Muito simples, criando uma "Cidade Franca" na Zona Saloia ou no Alentejo (ou seja, para lá do sol posto, longe da casa dele) onde se recebessem todos os imigrantes, isolados do resto do País (e da Europa), onde trabalhariam à vontadinha em estruturas "privadas" (claro), desde que pagassem uma renda anual a Portugal. Depois, poderiam regressar aos seus países. É claro. A gente quer é que eles venham, paguem mas não se misturem. À vontadinha, pá, sem espiga. Não se sabe bem o que lá fariam, onde trabalhariam, mas isso seria lá com eles e com os "privados" que fariam a gestão da Cidade Franca. Passa-me já pela cabeça meia dúzia de sugestões de "trabalho" onde vários cartéis - legais e ilegais - e multinacionais não se importariam nada de investir, desde que a Cidade Franca fosse também offshore financeira. As contas são infalíveis, desde contabilizar "72h/ dia" "segundo o Génesis" (grande clássico da economia e das relações laborais, como se sabe) a espetar em tal guetto 50 milhões de imigrantes, seguindo o exemplo de Manila (excelente modelo de harmonia social, salubridade e qualidade de vida). Tudo calculado, tudo pensado, é só lucro e vantagem para todos. Objetivo final? está no fim do texto: "Seremos todos sheikes árabe, só praia e gajas boas" (e, caso houvesse dúvidas, está uma foto para o comprovar). Magnífico. Não sei bem como premiar isto. Óscar? Comenda? Razzie? Hmm a Ana Matos Pires poderá dar uma sugestão no novo serviço que acaba de inaugurar.

P.S. - Dei uma vista de olhos pela sua obra, Acabou-se a Festa, Lisboa, Vogais, 2011. Parei na parte em que sugere acabar com as renováveis e transferir as centrais nucleares espanholas para Portugal. Fiquei tentado a parafrasear uma expressão do livro, devidamente adaptada à sua pessoa, aquela em que diz (p. 85), "Nossa Senhora de Fátima, que apareceste para salvar Portugal, como Permites governantes destes para Portugal?"

Contradições, onde?


  1. Difícil de entender que polémica pode haver na coexistência de soluções alternativas dentro do pensamento orçamental do PS.

  2. É que uma coisa é encontrar soluções dentro do enquadramento atual europeu – respeitando as regras em vigor. Soluções imaginativas, que mudam a lógica e a perspetiva com que se encara o problema orçamental não sendo logo à partida contraproducentes, como acontece com a proposta de austeridade permanente protagonizada e acerrimamente defendida pelo PSD/CDS.

  3. Outra coisa diferente é continuar a afirmar que as atuais regras europeias apenas permitem respostas sub-ótimas: a insistência num diagnóstico errado do problema original gera uma lógica divisionista entre países e custos sociais e económicos muito superiores ao que seria necessário.

  4. Agora, lutar por um diagnóstico correto, que permita enquadramentos institucionais diferentes na Europa, não isenta ninguém de apresentar soluções para o problema que existe hoje, neste enquadramento específico atual.

  5. Assim, é tão irresponsável acreditar que se pode ir unilateralmente contra a Europa, como crer que os 130% de dívida sobre o PIB serão algum dia reduzidos pela austeridade permanente.

  6. Responsabilidade é lutar, sim, mas nunca esquecendo o aqui e agora.

Elogio exagerado

O documento “Uma década para Portugal”, apresentado a 21 de Abril pelo PS, foi promovido a Orçamento do Estado pelo PSD quando este partido sugeriu a análise da UTAO ao mesmo. Reconhecendo que se trata de uma proposta bem estruturada e que configura de facto uma alternativa face ao atual triste estado de coisas, creio, ainda assim, que tal promoção é um exagero. É apenas um documento de base, faltando o programa eleitoral que certamente concretizará mais medidas e até algumas de forma diferente. Partilho, pelos vistos, com o PSD a esperança de ver a opinião da UTAO, mas no momento certo. Isto é, sobre a concretização do documento nos Orçamentos do Estado dos próximos quatro anos de legislatura.

Dúvidas, só dúvidas

Vaporizar - como alguns gostam de dizer - já não está à margem da lei. O novo normativo, ontem aprovado pelo Conselho de Ministros para o tabaco, proíbe o uso do cigarro eletrónico com nicotina em locais públicos fechados, à semelhança dos cigarros tradicionais. Os eletrónicos de sabores ficam fora da interdição. Os peritos congratulam-se com o avanço legislativo atéaqui havia um vazio legal nesta matéria -, mas alertam para o sinal de confusão que suscita e para a dificuldade de fiscalização.

 

Hum, e como é que alguém vai saber se o líquido que eu tenho dentro do cigarro tem ou não nicotina, hein?

 

"A proposta de lei prevê, ainda, a interdição da venda de cigarros eletrónicos na Internet"

 

Sim? E como é que isto se faz?  "vão pôr polícias à porta dos browsers?" foi a hipótese levantada por uma amiga 

 

p.s. - a itálico, excertos de notícia no JN de hoje 

O debate constitucional do Observador - (iii) - O preâmbulo

Sempre que se fala de revisão constitucional vem à baila o Preâmbulo. O Observador destacou-o na segunda de 50 perguntas que dedica ao conhecimento da Constituição (bem fraquinhas na sua maioria até agora) e abriu um espaço de comentário sobre a necessidade da sua alteração.

O preâmbulo da Constituição é um ótimo teste ao nível de conhecimento de direito constitucional dos cidadãos. Talvez a primeira evidência que deva ser pronunciada a este respeito é a de que não há nada de errado com querer-se que os portugueses tenham um nível mínimo de conhecimento sobre a Constituição e as regras que a regem. Por isso, o preâmbulo é um sítio ótimo para começar, explicando que ele não é normativo, não pretende regular a vida de ninguém, não parte parte do pacto que os cidadãos, de modo renovado, aceitam para a sua vida em comunidade.

O preâmbulo limita-se a ser História. Não é coisa pouca, porém. Sabemos qual é o preço de querer alterar ou apagar a História: repeti-la no que tem de pior. Apagar ou alterar o preâmbulo de uma Constituição vigente, por mais alterada que tenha sido ou venha a ser, é uma aberração. Não sendo ele normativo e sendo ele História, ele recorda-nos como nos erguemos, como começámos a caminhar e como mesmo com todas as mudanças que soubemos fazer nos mantemos fiéis a um conjunto de valores. Apesar da ausência de valor normativo do preâmbulo, o seu valor histórico é total. Apagá-lo é algo só imaginável num cenário de mudança radical de Constituição.

 

No caso da Constituição portuguesa o preâmbulo é, para mais, salomónico: na proclamação de "abrir caminho para uma sociedade socialista" de que as várias revisões constitucionais se desviaram, o preâmbulo recorda-nos a sua não normatividade, a liberdade que a Constituição permite ao legislador ordinário, e recorda à esquerda e à direita que proclamações e medos não sobrevivem a decisões democráticas de (re)orientar a Constituição no sentido em que os eleitores queiram, enquanto se continuarem a rever nos seus princípios fundamentais.

Apagar o preâmbulo seria, isso sim, abrir caminho para nos esquecermos de tudo isto. Um erro terrível, lição fundamental que a História nos ensina.

Humor negro?

"Humor negro" não, estupidez e desonestidade intelectual absoluta. Detestei a reportagem, mais uma "analealdade" completamente manipuladora, só mesmo Leal da Costa para salvar a coisa. Vergonha alheia.

O debate constitucional do Observador - (ii) - O móbil

Para além do que escrevi sobre o interlocutor e o contexto, importa analisar as causas que são apresentadas pelo Observador como justificando a organização nas suas páginas de um debate constitucional, de três sessões constituintes e, finalmente, de uma Nova Constituição (sublinho, pela sua importância, que o Observador antecipa as conclusões do debate concluindo que uma mera revisão não servirá). 

 

É certo que pode dizer-se que qualquer jornal está dispensado de justificar a sua escolha pelo destaque de uma dada matéria, para mais quando ela tem a importância de um debate constitucional, mas, novamente, tal como o interlocutor e o contexto são relevantes para determinar a capacidade persuasiva dos argumentos - que é uma das suas principais funções - também o móbil que justifica a escolha de um conjunto de argumentos é relevante para os apreciar.

 

Para podermos analisar as razões temos que ler o que nos é apresentado como tal e interpretar. É isso que fazemos em qualquer debate. Os materiais que temos à nossa disposição são essencialmente um vídeo de David Dinis, um Editorial intitulado "Todos somos constituintes" e ainda um artigo intitulado "Que projeto é este?", embora outros materiais existam e possam vir a surgir, como por exemplo este Explicador

 

David Dinis parte de uma constatação mais ou menos evidente sobre a realidade portuguesa de que estamos sempre em "processo de revisão em curso". Mas isso nada nos diz sobre se esse processo contínuo é algo de bom ou de mau. David Dinis apresenta-o como algo de bom, que num sentido coloquial de revisão permanente em quanto debate é perfeitamente aceitável, mas que não resiste a uma interpretação diversa quer jurídica, quer política sobre a própria revisão do texto constitucional, enquanto momento em que, enquanto comunidade deixamos de discutir e alteramos normativamente o nosso modo de viver em conjunto. E isto, por um lado, porque a Constituição claramente prefere a estabilidade e a maturação, ao escolher o intervalo de 5 anos entre revisões constitucionais e ao dificultar muitíssimo as revisões extraordinárias (ou seja, a qualquer momento), exigindo uma grande maioria de portugueses que a queira; e, por outro, porque os próprios portugueses - através dos seus representantes - em 39 anos apenas pretenderam rever ordinariamente a Constituição por 4 vezes, o que demonstra que mesmo que se acabasse com as revisões ordinárias, permitindo a revisão a todo tempo por maioria de 2/3 dos deputados, não era certo que tivéssemos um permanente "processo de revisão em curso". Há depois os argumentos comparados, claro. Em regra, olhando à nossa volta, o debate constitucional é contínuo mas as Constituições são documentos estáveis com poucas revisões ou com revisões de pormenor. Existem, pois, boas razões, como as que apontaram os autores do projeto de revisão constitucional que o Observador toma como ponto de partida para a discussão sobre uma Nova Constituição, para não se realizar uma revisão constitucional - e, por maioria de razão, para não carecermos de qualquer Nova Constituição - embora existam muito boas razões para mantermos aceso o debate constitucional e até para corrigirmos erros e desatualizações da Constituição.

Isso mesmo é, aliás, confirmado pelas restantes palavras de David Dinis, onde destaco "a necessidade de questionarmos permanentemente como queremos viver, como nos queremos organizar, e já agora de que formas nos queremos unir sobre um mesmo texto constitucional". Isto dito, é preciso sublinhar que uma Constituição é algo perene ou pelo menos tão perene como o regime político que fundamenta e conforma. Por isso, podemos e devemos questionarmo-nos, mas devemos ter muito presente que tudo o que seja propor uma Nova Constituição, como se propõe fazer o Observador, significa afirmar a necessidade de mudarmos de regime político. Uma mudança tão radical que uma revisão constitucional não serve. Aliás, o Observador diz que a proposta que apresenta é apenas um bom ponto de partida para a discussão que concluirá com a proposta da referida Nova Constituição. 

 

Ora, está bom de ver que a mudança de regime político não é algo que aconteça de ânimo leve. Por isso é tão importante distinguirmos entre uma Nova Constituição e uma Revisão Constitucional. A primeira pressupõe que queremos alterar todas ou algumas das ideias fundamentais em que assenta a nossa comunidade política. Que direitos temos? Quem detém o poder? Repartido entre quem? A História demonstra que uma Nova Constituição é normalmente resultado de uma grande dissonância entre o poder e a maioria dos cidadãos ou entre estruturas esclerosadas e incapazes de continuar a assegurar a manutenação e o progresso de uma comunidade política. É isso que está em causa quando pensamos numa Nova Constituição e quando avaliamos a Constituição vigente. Daí que faça sentido perguntar se esse é o caso - o caso para uma Nova Constituição - ou se aquilo que esteja ultrapassado na Constituição não pode ser democraticamente alterado pelas regras propostas pela própria Constituição.

 

Para o Observador a resposta está dada. Uma Nova Constituição é precisa. O debate parte subordinado a essa premissa. Ainda que aceitemos - o que seria estranho face ao que está escrito - que o Observador se está a referir a uma revisão constitucional tão profunda que equivale a uma Nova Constituição estaríamos perante o mesmo problema: teríamos algo revolucionário, uma transição constitucional mais do que uma mera revisão constitucional. Nada há de errado quanto a isto. É salutar. O que já resulta estranho são as razões apontadas para se propor algo tão radical. Pensar-se-ia que as circunstâncias seriam dramáticas. Que uma larga porção da sociedade portuguesa estivesse à mercê de catastróficas circunstâncias provocadas pela discordância entre a vontade popular e o que está preceituado na Constituição. Mas para o Observador não é bem isso. Aí podemos ler que quase todos os protagonistas da nossa vida pública dão a entender que sim [que há um problema com a Constituição]. Mesmo que isso fosse verdade seria contraditório com algo que o próprio Observador reconhece. Num país com elevadas taxas de abstenção, em que portanto a comunidade política tem um problema de consonância com os seus representantes, em que todos se queixam da falta de músculo da sociedade civil, qual é o valor e a representatividade dos "protagonistas da vida pública"? Serão os nossos protagonistas representativos? Não devemos confundir protagonistas com legítimos representantes. Ou serão os nossos protagonistas sobretudo aqueles que representam uma fação que se sente descontente com o que não pode fazer politicamente com a Constituição em que se move?

Lendo com mais atenção percebe-se que o Observador labora num erro pois imputa a um certo grupo de protagonistas queixas contra a Constituição quando na verdade esse grupo tem queixas é contra quem ataca a Constituição. Escreve-se no Observador que há protagonistas que dão a entender que a Constituição é um problema "quando reclamam que a Constituição está a ser atacada e violada sistematicamente por governos e maiorias parlamentares". Lamento, mas do que estas pessoas estão a reclamar é desses governos e dessas maiorias parlamentares. Não da Constituição. Sejamos honestos e rigorosos. Daí que sobrem os que "se queixam de que a Constituição está a ser usada por aqueles que querem resistir à adaptação do Estado e da economia portuguesa a um mundo mais aberto e competitivo". Estas pessoas têm toda a razão em queixar-se da Constituição. Mas então, pergunta-se, o que os impede de convencer os portugueses a elegerem dois terços dos deputados à Assembleia da República, que é exatamente o que seria preciso para alterarem a Constituição nesse sentido? O que impede os críticos da Constituição de jogarem ao jogo democrático?

 

Creio bem que, como pressuposto de toda a leitura que se faça da iniciativa de debate constitucional do Observador, desde o projeto de revisão constitucional que toma como ponto de partida até à Nova Constituição que venha a surgir, passando pelos vários artigos, explicações e perguntas que vai publicando, mais do que um debate neutro sobre a Constituição que temos, há uma posição de princípio contra a Constituição e contra as suas opções políticas de fundo, nomeadamente no plano dos direitos sociais. Este aspeto é essencial.

Criticar uma Constituição por ela ser má tecnicamente, estar desatualizada ou conter contradições é algo que tem um valor, merece um juízo e gera uma discussão completamente diferente daquele que é gerado por considerarmos que a Constituição é politicamente inaceitável. O debate provocado pelo primeiro é essencialmente técnico. Ele vive de algo a que o Observador tem dado pouca atenção e a que aqui voltarei amiúde: a comunidade de juristas constitucionais. É assim em todo o lado, como é assim em todas as ciências. São os cientistias que asseguram a integridade das ciências. Já a discussão em torno do programa político de uma Constituição é uma discussão para os cidadãos e para os seus representantes. No contexto da atual Constituição essa discussão é livre e pode provocar mudanças se 2/3 dos representantes dos portugueses se colocarem de acordo. Parece uma maioria razoável quando se trata de decidir o pacto que regula a nossa vida em sociedade e o modo como o atualizamos. 

Daí que a batalha pela Constituição política-ideológica deva ser separada ao longo deste debate da discussão  técnico-jurídica. Temo bem, a ver pela amostra de perguntas diárias que o Observador vem publicando, que este jornal se esteja aproveitar do epifenómenos históricos da Constituição (comuns a todas elas) e da normal ignorância técnica dos cidadãos para colocar tudo no mesmo saco e qualificar também como erro - ou pelo menos excesso desvairado - as opções políticas livres que estão colocadas na Constituição e que aí se têm mantido intocadas - e assim renovadas - ao longo de várias revisões constitucionais, com respeito pelo princípio democrático.

 

Daí que parta para a análise dos problemas levantados em torno da Constituição e para a análise do projeto de revisão constitucional caucionado pelo Observador convencido de que este jornal mais do que ter como móbil a crítica aos aspetos desatualizados e menos corretos da Constituição como justificação para uma revisão constitucional que os corrija, parte de uma posição de crítica ideológica às opções políticas da Constituição. Algo que sendo completamente legítimo - sobretudo para um jornal alinhado à direita - exige dos interlocutores, de todos nós, uma especial colocação e crítica face aos argumentos que surjam em todos os textos deste jornal. Do que se trata a propósito da Nova Constituição do Observador é ainda e sempre de discutir política, não de corrigir tecnicamente uma Constituição. Do que se trata é, afinal, de justificarmos os 2/3 de representantes democráticos que precisamos para manter a Constituição como está, para a melhorar tecnicamente ou para alterar o quadro ideológico (bastante amplo, na minha opinião) que ela permite aos Governos que se formam à sua sombra. Esta evidência, sobretudo escrita, não deve impedir-nos de a reafirmar. Esquecê-lo ou confundi-lo terá consequências nefastas. Os meus posts seguintes serão sobre estas questões.

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