Sempre tive uma vaga sensação de que, à medida que eliminamos barreiras e preconceitos, encontramos sempre novas formas de criar linhas de demarcação ou de reinventar formas de discriminação. As motivações é que diferem. Estou a falar em termos sociais e, mais concretamente, no quotidiano do espaço público. Ontem deparei-me com um exemplo interessante.
A Praia das Maçãs é uma localidade, mas também, e naturamente, uma praia. Estreita. Noutros tempos, havia espetáculo dia-sim-dia-não com pessoas que não respeitavam a cor da bandeira (invariavelmente amarela, à cautela) e faziam ouvidos moucos - por negligência pura ou por bravata - aos avisos dos nadadores-salvadores e que se embrenhavam demasiado nas águas revoltas do Atlântico, nadando para "fora de pé". Depois não conseguiam regressar e era sempre um drama. Lembro-me de vários episódios, alguns com desfecho trágico. Nessa altura, os ditos nadadores-salvadores (que eram então sempre tratados pelo nome arcaico de "banheiros") desdobravam-se em cautelas para minimizar problemas: havia uma "zona de banhos" (as placas que lá estão ainda são as mesmas), no centro da praia, e duas "zonas perigosas", nas margens, para evitar arrastamentos para as rochas. E quando a maré subia ou havia alteração da ondulação, lá vinha o apito de aviso. Ou vários, porque gente teimosa e negligente sempre houve. De maneira que sempre me habituei a reagir com alarme ao "apito". Era sinal de perigo potencial para alguém.
Os tempos mudam. Ontem à tarde, os "banheiros" apitaram muitas vezes. Mas não era sinal de perigo. Pelo menos, do perigo que eu imaginava. Era outra coisa: sensivelmente metade da praia (logo, "metade do mar") está reservado ou indicado como de "prática de surf", demarcado com umas bandeiras verdes ("SolFun", uma empresa de surf local). Logo, e como eram 5 da tarde e hora de aula, era preciso arranjar espaço para a dita. Consequentemente, apitou-se furiosamente para desviar os banhistas para a direita, que ficaram acantonados numa estreita faixa de mar. As velhas placas de "zona de banhos" não distavam entre si mais de uns 20 m. O resto é "zona de surf". Numa Praia Grande há espaço para todos. Ali, é constrangedor. Valeu o facto de ser sábado, estar vento e o número de banhistas ser relativamente reduzido. Escusado será dizer que o pouco espaço livre e sobrante do areal estava devidamente ocupado por futebolistas de ocasião, porque essa é uma praga velha a que ninguém liga e que a ninguém parece incomodar (exceto a mim, e há muito tempo).
Provavelmente a escola de surf paga para fazer tal uso e usufruir de tal exclusividade, comparticipa nas despesas de manutenção ou limpeza da praia ou sustenta os salários dos "banheiros", à semelhança do concessionário. Sem ela, possivelmente, a praia não disporia das boas condições que possui hoje, entre acessos, higiene e duches. Não sei. Sei é que, em simultâneo, está anunciado que se trata de uma "Praia Acessível" (como a da Adraga), ou seja, dispõe de acessos e de equipamentos para pessoas com deficiência física e mobilidade reduzida. Pessoas que há 30 anos não tinham tal possibilidade. A praia da Praia das Maçãs é hoje, portanto, e simultaneamente, uma praia mais igualitária e mais discriminatória, mais pública e mais privada, mais inclusiva e mais exclusiva.
P.S. e fui novamente ao Alto da Vigia espreitar o templo romano e o ribat. Não fiquei nada tranquilo, pela quantidade de gente que por lá andava a tirar selfies no meio das ruínas e com o oceano como pano de fundo. Não sei o que está previsto fazer para proteção do local, mas temo o pior num futuro não muito distante.
Conheço a Praia das Maçãs desde os 10 anos. Passei lá praticamente todas as férias durante um quarto de século. Vivi num local a poucos metros (sim, poucos, para não dizer "mesmo ao lado") de uma "coisa" que então ninguém por ali sabia o que era ("um cemitério medieval" era a versão mais comum) e que é uma necrópole pré-histórica, com vários horizontes (o mais antigo pode remontar aos inícios do 4º milénio a.C.). Mas algo mais misterioso despertou a minha atenção mais recentemente (digamos, há uns 20 anos), ao ler "Da Fábrica que Falece à Cidade de Lisboa", de Francisco de Holanda: conta o autor que o infante D. Luís (irmão de D. João III) mandou-o chamar a Lisboa e ambos visitaram a serra de Sintra, tendo chegado a um "pequeno outeiro" "junto à foz do rio de Colares", onde estava "um círculo ao redor cheio de cipos e memórias dos imperadores de Roma que vieram àquele lugar; e cada um punha um cipo com seu letreiro ao Sol Eterno e à Lua, a quem aquele promontório foi dos gentios dedicado". E junta um desenho. Nas notas da edição que li (Liv. Horizonte, 1984) estão transcritas impressões de Jorge Segurado, de 1970, que transcreve registos posteriores e dão conta de nada existir no local (pp. 90-92).
Andei, durante muito tempo, a congeminar ideias sobre a incógnita: localização errada e imaginação fértil do autor eram as mais comuns. Foi-me sugerida a hipótese de o terramoto de 1755 ter causado danos na região ou alterado a configuração da costa por ali. A imagem do círculo com 12 cepos pode ser vista em gravuras de Sintra do século XIX, "tiradas do natural", que faziam certamente eco difuso daquela imagem. Uma visita ao Museu de Odrinhas, há uns 10 anos, aquando de uma sessão de "reconstituição histórica" avivou-me o interesse, mas as conversas que tive com funcionários foram inconclusivas: havia vestígios e suspeitas, mas nada de concreto se sabia.
Subitamente, há uma semana, deparei com isto. Fui lá de imediato, na sexta feira passada, no final de uma tarde de praia. Lá está ele. Felizmente que o acesso pela praia não é muito fácil, porque tremo de pensar no que aconteceria se o fosse.
Depois, verifiquei que já fora noticiado na imprensa, há quase 2 anos, e que os trabalhos arqueológicos iniciaram-se há 8, depois de cinco séculos de esquecimento. E que há informação disponível na página do mesmo museu e, até, na Wikipedia. Como se pode viver tanto tempo na ignorância, dispondo de internet e de informação abundante que nos cai em catadupa a toda a hora, não é?
Trata-se de um templo romano do séc. II, com utilização islâmica posterior. Senti um entusiasmo juvenil, ampliado por várias informações complementares. Não era um templo qualquer, mas algo reservado a altas figuras do império romano, o que comprova a importância do local em termos ideológicos e, por consequência, materiais: era o local destinado a celebrar a união da terra (a Serra de Sintra) com o oceano, o Sol e a Lua, ligando, portanto, os cultos locais com a divindade do imperador e o equilíbrio do império. Mais, deduzo que as informações reproduzidas pelos autores clássicos sobre os cultos lunares, o "monte da Lua" e o extremo ocidental da Europa não se referem ao Cabo da Roca (que se vê dali), mas a este promontório, que os romanos reaproveitaram e integraram no seu próprio culto imperial. O responsável pelas escavações, Cardim Ribeiro, afirma que o corpo principal do templo ainda não foi escavado e deverá estar localizado nas imediações. Isto faz-me imaginar o que estará ainda por descobrir. E a importância este local terá tido ao longo de séculos. E aguardo, com expectativa, os desenvolvimentos, esperando cinicamente que o futuro lhe reserve uma sorte diversa da necrópole ao lado da qual vivi durante décadas, onde cheguei a ver motas aos saltos e que hoje está afogada em vivendas geminadas de uso turístico e sazonal. É que, se é para sorte equivalente, melhor será remeter-se ao esquecimento durante mais meio milénio.
Pergunta singela: alguém sabe a razão por que é hoje feriado? Ou, ao menos, que feriado é? Eu relembro: 15 de agosto, Assunção de Nossa Senhora. Gostava de, um dia, ter estatísticas não-vale-olhar-para-o-calendário. Apesar do fortíssimo - para não dizer invencível - conservadorismo nacional sobre tudo o que envolve "feriados" (fazendo convergir Igreja, PCP, esquerda, direita, funcionários públicos, católicos, ateus, sindicalistas e simples "homem da rua"), acredito que não serão muitos os que saberão exatamente do que se trata. A razão do feriado. Não interessa muito, pois não?
Interessa, sim. Não é um feriado religioso qualquer. Não envolve os fundamentos do cristianismo (como o nascimento, a paixão ou a ressurreição de Cristo) , é apenas uma festa religiosa baseada numa tradição apócrifa, sem base bíblica, segundo a qual Maria ascendeu aos céus após a sua morte. E é feriado porquê? Porque, em 1950, o papa Pio XII transformou-a em dogma da Igreja Católica, tornando-a, assim, indiscutível, segundo os preceitos da infalibilidade papal decretada pelo Concílio Vaticano I (em 1870). E o que dizem estes? Que o papa, quando emite juízos ex cathedra (ou seja, "na cadeira" de S. Pedro), está isento de erro, porque é guiado diretamente pelo Espírito Santo. Infalível, portanto. Isto não pode ser discutido: é um dogma. Sabem quantas vezes foi invocada a infalibilidade papal, desde essa data (excluindo processos de canonização)? Uma. Exato, essa.
Não tenho preconceitos anti-católicos que me levem a não aceitar um feriado de base religiosa. Mas já os tenho quando a única coisa que o justifica é um dogma suportado por outro dogma.
Esta caiu-me hoje no regaço porque estou a ler uma obra de um teólogo católico, de seu nome Hans Kung, que apelou recentemente ao atual papa para rever o dogma da infalibilidade e que personifica o ecumenismo e o diálogo entre religiões (e civilizações), talvez a última esperança de renovação de uma Igreja bloqueada. E sim, a obra é "Islão - Passado, Presente e Futuro", que deveria ser de leitura obrígatória para fazer uma barrela à ignorância das tantas centenas de pseudoespecialistas em islão que todos os dias mandam bitaites de bancada sobre o assunto na imprensa portuguesa. Este, por exemplo.