A minha avó não ligava grande coisa aos noticiários internacionais. O mundo era, para ela, uma coisa turbulenta, confusa e distante e o facto de não saber ler nem escrever acentuava o sentimento de distância e de alheamento. "Notícia" era o que se passava em Portugal (e ainda mais o que ocorria na sua localidade, na sua vizinhança e na sua família, naturalmente). Quando via imagens de violência, de um desastre ou de um evento trágico, perguntava de imediato: "é cá ou é lá fora?". Quando sabia que "era lá fora" fazia ar de alívio e saía-lhe um "ah é lá fora".
Ontem fiquei estarrecido ao ver o noticiário da noite (na SIC, salvo erro) e lembrei-me da minha avó. Dezenas de pessoas morreram num ataque com armas químicas na Síria e a reportagem mostrava imagens de caos, gente a ser lavada com jatos de água na rua e a ser levada para o hospital; crianças em choque, jovens deitados em mesas, pessoas com máscaras, em sofrimento, com dificuldade em respirar. Senti um murro no estômago, embaciou-se-me a vista. Mas durou pouco e passou-se à notícia seguinte. É lá fora.
Ontem, hoje de manhã, procuro informações e fico de alma apertada. Capas de jornais, nada, com exceção de um pequeno retângulo no Público, e que fala de Assad. Na notícia online, os comentários são "estratégicos", sobre Assad, os ataques "aliados", o assalto a Mossul, as dúvidas sobre o meio usado no ataque, se há ou não "cratera". Na rádio, fala-se da reunião do Conselho de Segurança. Sobre as vidas e o sofrimento das pessoas, nada. São pessoas com nome e rosto e que vivem na sua localidade, têm vizinhança e famíllia? Provavelmente. Mas é lá fora.
Nós não queremos saber o que sofrem as pessoas lá fora. Queremos é que não tragam sofrimento para cá. Que se deixem lá estar, que nós somos um continente pacífico e não precisamos de importar isto. O sofrimento cá tem sempre nome próprio, rosto, família, passado, afetos e dimensão humana. Lá, são números e efeitos colaterais de um jogo estratégico no qual interessa é perceber se o Daesh está a ser derrotado ou se está a progredir. Se está a recuar, ótimo, temos é que zelar para que não se vinguem e causem sofrimento cá. Mas enquanto andarem entretidos lá entre eles (os "islâmicos" mais "radicalizados" e os outros mais "moderados"), a gente vai mudando de canal em paz.
No dia anterior vi outra peça sobre os horrores da República Centro-Africana. Uma portuguesa (presumo que de uma ONG) dizia que "nem nos apercebemos da sorte em que temos em viver num país seguro, na Europa". Momentaneamente, a RCA passou a ser "cá". Porquê? Porque está lá um contingente português, em missão de paz. Se algum dos soldados morrer, terá um nome, um rosto, uma família, um luto e uma homenagem. O resto, não. É lá fora.
Há exatamente cinco anos escrevi aqui o post"Descansa consciências e depois?" onde contava que tinha recebido "o seguinte pedido de primeira consulta "Vimos por este meio solicitar a marcação de consulta e acompanhamento clínico (...) no âmbito de uma suspensão de pena de prisão por x anos determinada pelo Tribunal Y com origem na prática de cúmulo de violência doméstica, com a injunção de "tratamento e acompanhamento psicológico ou psiquiátrico do arguido" conforme cópia anexa". No referido anexo encontrava-se o apelo ao número 4 do artigo 152º do CP que determina a possibilidade de imposição de penas acessórias, nomeadamente a obrigação do arguido em frequentar "programas específicos de prevenção de violência doméstica"". O dito pedido mereceu-me o seguinte comentário "que papel é o meu, enquanto psiquiatra, na resposta a um pedido deste género? Brincar aos programas e fingir um acompanhamento psiquiátrico para o qual não tenho qualquer formação específica é coisa que me recuso a fazer por me parecer ética e deontologicamente reprovável. Enviar para alguém que o possa e saiba fazer não existe como possibilidade. Resta-me, portanto, devolver o pedido à proveniência com esta informação, porque descansar consciências não é, não pode ser, o papel da lei.
Em março de 2015, na sequência de uma reunião alargada do Núcleo de Atendimento à Vítima de Beja a que assiti, troquei uma série de mails com um elemento da CIG e fui informada da existência de um "programa para agressores em contexto judicial (entenda-se, aqueles que estão, por via de uma decisão judicial, obrigados à frequência de programas, e em exclusivo esses), o Ministério da Justiça tem em curso um programa, progressivamente a ser alargado a todo o país e ao contexto prisional, que visa dar resposta, embora não a esgotando, às necessidades que elencou.". Depois de ter recebido esta informação a conversa "mailistica" continuou. Primeiro agradeci, assumindo que desconhecia o tal programa, e depois referi que "A conclusão final é que os magistrados desconhecem a lei e a orgânica geral quando substituem a pena de prisão por "consultas" e parece-me muito importante que do lado da saúde isto seja dito e desmascarado. (...) acho que se justificava o desenvolvimento de programas para agressores que, com indicações clínicas específicas, se destinasse a agressores com patologia mental, disso não tenho dúvidas.".
Num mail posterior escrevi "Consegue-me fazer chegar dados da aplicação do programa no distrito de Beja e quem os está a orientar no terreno?" e "Onde posso saber mais sobre estes programas, M.? Onde funcionam, quem os executa, quantos agressores estão no programa, p ex.". Nunca obtive resposta.
Não sei o que se passa em Barcelos mas temo que a realidade seja semelhante à de Beja, onde dirijo um Serviço de Psiquiatria que, apesar de ter em funcionamento uma Equipa de Prevenção da Violência em Adultos, não tem capacidade de resposta para estas solicitações - por falta de recursos humanos e por falta de formação específica.
Continuamos na mesma, descansa consciências e depois? E ainda que eu mal pergunte, quem define os "tratamentos médicos" referidos no artigo? Quais são os critérios clínicos?