Quem visita o Museu da História do Povo Judaico, em Tel Aviv, depara com uma parede onde consta uma única palavra, em alto-relevo: “Remember”. Nem sempre a História é encarada desta forma, ou seja, de que não envolve apenas o passado mas também o olhar que lançamos sobre esse passado e a memória que dele perdura. De facto, e tal como a individual, também a memória coletiva é construída a partir da retenção seletiva e acumulada de imagens e perceções, de narrativas e elaborações teóricas, emocionais ou afetivas organizadas num determinado sentido. Cada país, cada povo possui os seus mitos fundadores, os seus heróis e avatares, as suas referências identitárias. E, também, os seus fantasmas e vazios. Portugal, como é evidente, não é exceção.
Porém, a relação dos portugueses com o seu passado não é fácil, sobretudo com o seu passado ultramarino ou, se preferirmos, colonial. É uma memória inquieta, insegura e ambivalente, que deambula entre uma mitificada “idade de ouro” de grandezas passadas, um traumático fim do império, uma euforia europeísta e um desencanto com o presente. O traço dominante desta relação é um véu diáfano de poeira amnésica que cobre vazios e sombras, sedimentado por uma tradição enraizada de autoelogio ideológico em torno de um pioneirismo civilizador nos “Descobrimentos”. Os portugueses nunca fizeram o balanço do império, muito menos o luto e a catarse do seu fim abrupto.
Ocasionalmente, este torpor sofre abalos. O mais recente ocorreu há meses, no rescaldo das declarações de Marcelo Rebelo de Sousa em Gorée que refletem os estereótipos dessa amnésia: a evocação de um alegado “pioneirismo” – mais um – de Portugal na abolição da escravatura, como reflexo da sua “vocação humanista”. A reação às suas palavras traduziu-se, fundamentalmente, num apelo a um debate aberto - e livre das velhas retóricas - sobre a nossa memória coletiva do período colonial e, em particular, do tráfico de escravos. Esta intenção foi de imediato contestada na imprensa e nas redes sociais, com várias justificações: 1. que se trata de um passado remoto e de um assunto resolvido; 2. que não há qualquer justificação ou utilidade em remexer e reavivar esta questão; 3. que quem o faz é movido pela ignorância ou por uma agenda ideológica; 4. que se trata de uma questão de História e, portanto, deve ser deixada aos especialistas.
O historiador João Pedro Marques (JPM) tem sido a voz mais persistente na defesa destes argumentos. Além de redundantes – não é por repetir uma mesma ideia que ela ganha validade – as posições de JPM são particularmente frágeis, ironicamente, onde o autor as julga mais sólidas: na História. JPM é um reputado historiador, algo a que o próprio não se esquiva de repetidamente relembrar e que eu, naturalmente, confirmo. Muito haveria e há a dizer sobre os dados históricos e o quadro explicativo que apresenta nos seus textos. Mas JPM falha, precisamente, por se limitar à História e “blindar” o seu raciocínio com a sua própria autoridade como historiador. Logo que sai da História, resvala para a apreciação grosseira, nomeadamente com um traçado caricatural e estereotipado de quem insiste na pertinência deste debate: “flagelantes que têm uma névoa política e ideológica no olhar”, “ingénuos bem-intencionados”, “académicos engagés” ou “jornalistas de causas” com “reivindicações (…) ideologicamente engatilhadas”, todo um submundo intelectual acima do qual JPM julga planar, isento e seguro com o peso do seu mérito académico.
Na minha opinião, trata-se de um erro e de um equívoco. Na realidade, o debate que urge fazer não é no plano académico ou histórico, mas sim no da opinião pública e da memória coletiva; não é no da discussão do passado, mas da nossa perceção dele, hoje; não envolve o esgrimir de argumentos entre historiadores – algo que já foi e continua a ser feito -, mas o despertar do interesse geral para o tema. Que tema? Este: que a memória dos portugueses enquanto povo permanece truncada no que diz respeito ao nosso passado colonial, ofuscada por “descobrimentos”, feitos, heróis, pioneirismo, brandos costumes e excecionalismo no que toca à relação com outros povos; e que essa memória truncada tolda o nosso entendimento do presente e impede-nos de debater com clareza e sensatez – primeiro passo para enfrentar de modo aberto e descomplexado – velhas questões enraizadas, como a existência de problemas raciais em Portugal. As reações aos recentes eventos na Cova da Moura ou às declarações de um candidato autárquico mostram que temos ainda um longo caminho a percorrer neste sentido. Esse caminho só será possível de trilhar por via de um debate alargado, onde os historiadores e o mundo académico desempenhem um papel fundamental mas não exclusivo, precisamente porque a restrição destes assuntos à esfera académica e às suas “torres de marfim” permanece há muito tempo – demasiado tempo – um hábito e uma prática em Portugal.
W. Clode, médico contemporâneo de Gentil Martins, publicou na Revista da Ordem dos Médicos (ROM) um artigo onde comparou a homossexualidade ao daltonismo. Reagi assim, na ROM, pedindo responsabilidades à publicação médica - não se tratava de um órgão de comunicação social generalista, Clode não estava a dar uma entrevista de vida, no IPO, Clode não era um decano da medicina nacional. Mais, Clode não era reincidente.
Quanto a Gentil Martins, aqui decidi não tomar conhecimento e aqui optei pela ridicularização. Desta vez, porque achei que os dislates clínicos e deontológicos já ultrapassavam o razoável, pelo conjunto de razões que já aqui referi e porque me pareceu que a convicção de impunidade era absoluta e insustentável, mal li a sua entrevista ao Expresso da semana passada pedi a atenção da OM e em especial do bastonário ("linquei" Miguel Guimarães num post que coloquei num grupo fechado a médicos, no FB). Nada que a OM não tivesse feito recentemente com outros clínicos – aqui e aqui, por exemplo.
Gentil Martins escreveu isto no Público, enquanto apoiante do "Não" na altura do Referendo, e eu reagi assim, no Público, enquante defensora do "Sim" no Referendo. Não lhe pedi justificações nem satisfações deontológicas, não tinha de pedir.
"Ana", 14 anos, morreu em 2005 por complicações de um aborto provocado sem acompanhamento clínico.
"O que é a morte de uma mulher comparada com a morte de 20.000 crianças", comentou Gentil Martins num debate público sobre o Referendo em 2007, enquanto apoiante do "Não".
Isto, que é uma barbaridade, é uma opinião - uma opinião bárbara, no meu "barbaritómetro" a maior que o senhor já disse, mas uma opinião. Não lhe pedi justificações deontológicas, não tinha de pedir.
Que triste é ver um médico que não sabe que uma entidade nosológica se sustenta na semiologia médica, que para definir uma doença (ou perturbação) é necessário existir uma hipótese etiopatogénica, uma clínica, um curso, um prognóstico e uma proposta de abordagem terapêutica, que a Organização Mundial de Saúde tem um instrumento, que revê amiúde, chamado International Classification of Diseases (ICD) que abarca todas as especialidades médicas, nas quais se inclui a Psiquiatria. Que triste é a ignorância, que grave é a ignorância clínica num médico e a sua terrível contribuição para a tão desejável literacia em Saúde.
PS1: o português também não é o seu forte, eu ajudo. A frase foi "Não vou tratar mal uma pessoa porque é homossexual, mas não aceito promovê-la" (à pessoa, no contexto desta frase).
PS2: obrigada pelo cumprimento do formalismo, sendo docente académica não sou doutorada e, portanto, sou professora mas não Professora. Tenha havido pelo menos alguma réstia de honestidade e de verdade em toda a sua prosa, Sr Dr. Luís Carvalho Rodrigues.
Certa manhã, Gregor Samsa acordou de sonhos inquietos e deparou-se na sua cama metamorfoseado em Gentil Martins.
Há muitos que acham que o Dr. Gentil Martins "apenas" expressou uma opinião, que não reflecte a sua posição enquanto médico.
Vejamos, exactamente, qual a declaração:
"Não vou tratar mal uma pessoa porque é homossexual, mas não aceito promovê-la. Se me perguntam se é correto? Acho que não. É uma anomalia, é um desvio da personalidade."
Isto trata-se, vá, para efeitos de argumentação, de uma "opinião", proferida por alguém, que é um médico reconhecido, num dos jornais de maior tiragem de Portugal.
No entanto, se substituirmos exclusivamente a palavra "homossexual" por "mulher" ou "preto" ou "cigano" ou "católico" ou "judeu", não alterando substancialmente a afirmação, mas apenas o sujeito da apreciação, parece que já temos um crime público, a julgar pela leitura do artigo 240 do Código Penal.
Quer dizer, seria crime, não se fosse dita à mesa da taberna, mas expressada por exemplo, vá, num dos jornais de maior tir... ah!
Por acaso, aquele mesmo artigo que torna crime a divulgação pública de "opiniões" daqueloutro teor, também consagra a protecção da orientação sexual, ao criminalizar a incitação ao ódio e à violência que a tenha por base.
Chegamos a um ponto, parece, em que a mesma afirmação pode ser condenada pelos nossos colegas apologistas do "direito à opinião" se tiver umas palavras, mas não outras, embora à luz da CP isso não seja bem assim.
Portanto, parece que a justificação para a não condenação das afirmações públicas do Dr. Gentil Martins se fundamentam, aparentemente, em duas ordens de razões.
Primeira, porque é o Dr. Gentil Martins, porque tem 87 anos, porque ganhou estatuto de senioridade, e aparentemente isso torna-o impune aos olhos da lei - portanto, o professor está acima da lei...
Segundo, porque se trata da homossexualidade, esse alvo fácil, e a nossa mentalidade colectiva machista ainda não absorveu que a discriminação com base na orientação sexual é tão grave como a discriminação com base na raça, no sexo, na etnia e na religião. E, se este ponto é verdade, então trata-se, verdadeiramente, de um "estupor moral", para usar a própria expressão do professor.
Ambos os motivos são, obviamente, inválidos.
Por outro lado, do ponto de vista deontológico, o médico não passa a ser "pessoa privada" quando quer, como se tivesse um botão "on-off", quando fala publicamente. O Dr. Gentil Martins foi entrevistado enquanto médico, não enquanto "pessoa privada", apesar da "magnanimidade" que mostrou ao informar que tratou e trata homossexuais "como outra pessoa qualquer".
Portanto, quando fala publicamente é reconhecido como médico, e, por isso mesmo, interpretado pelo leitor como médico.
Que se saiba, o Dr. Gentil Martins não tem uma metade de cérebro médica e outra metade "privada", ou uma personalidade Dr. Jekyll e outra Mr. Hyde. Por muito que se queira separar as coisas, quando fala, fala pelos dois. E responde pelo dois.
Existe um corpo de conhecimento na Medicina, que vai evoluindo ao longo dos séculos e que é independente da nossa opinião.
A preocupação relacionada com a correcta aplicação prática desse corpo constitui a Deontologia. É nosso dever deontológico respeitá-lo e veiculá-lo publicamente.
Quando o Dr. Gentil Martins faz afirmações contrárias ao estado da Medicina actual, na qual a homossexualidade é entendida como uma variante normal das orientações sexuais, incorre numa falha deontológica, para além de poder incorrer num crime público de incitação ao ódio, como se viu.
Pedia-se que, no alto da sua senioridade, o Dr. Gentil Martins já tivesse percebido que quando se manifesta em público devia moderar o que diz e como diz.
Pois as consequências estão à vista e bem presentes neste fórum: agitação social, discriminação disfarçada de "opinião" e, esse sim, estupor moral e deontológico.
Ah! e uma horda de fariseus que rasgam as vestes pelo "direito à opinião", sem perceberem que estão na verdade a propalar o direito ao crime.
«Não é preciso ter vivido em França para se ter a noção da forma complicada como a memória coletiva do país lida com a 2ª guerra. Gostam de se imaginar como uma "nação de resistentes" e, por isso mesmo, o Vel d'Hiv é talvez aquilo que mais lhe fratura a narrativa heróica.
É muito interessante observar a forma como, no discurso polítco, se lidou com os acontecimentos de 16 de julho de 1942. Durante muito tempo não se falou do tema. De Gaulle, mais tarde reforçado por Miterrand, "resolveu" o assunto considerando que era responsabilidade do regime de Vichy e que este não representava verdadeiramente a França. Só em meados da década de 90 e pela mão de Chirac se muda de agulha e se assume que França é responsável (com uma pequena nuance muito interessante, é ao "estado francês" e "a franceses"e não a "França" e "aos franceses" que são imputadas responsabilidades). O discurso de Chirac nessa altura é muito interessante, tem tudo aquilo que é mito nacional - a pátria dos direitos humanos, etc, etc, insistindo na ideia de poucos franceses colaboracionistas - mas, pronto, há uma rutura clara com a forma oficial com que se lidava com aquela dolorosa memória (não por acaso, um dos que mais esperneou com isto foi Le Pen pai). Ah! Pormenor não irrelevante, o discurso de Chirac que fez a diferença aconteceu durante a guerra da ex-Jugoslávia.»
Hoje apetece-me mostrar Miterrand, é o exemplo perfeito de uma certa estratégia - "escapista"? - de lidar com a "memória nacional".E esta estratégia lembra-me tanto acontecimentos recentes em Portugal.
Adenda 2: Já depois de ter escrito este post Macron falou nas cerimónias do 75º aniversário e acabou de fechar o círculo, é a primeira vez que um presidente fala em "a França".
- Como escreveu a Manuela Correia "as suas declarações não são baseadas no conhecimento, revelando mesmo "erros crassos" 1 - À luz do conhecimento actual a homossexualidade não é uma doença psiquiátrica. 2 - A homossexualidade como "desvio da personalidade" é mais grave. É um erro científico."
Não, meu senhores, não estamos só no domínio da opinião a que o sujeito tem direito. Como diz o Tiago Moreira Ramalho "Um médico "reputado" expõe, nessa qualidade e no principal seminário do país, que a homossexualidade é uma "anomalia" e toda a gente tem de aceitar a bojarda como límpida e válida manifestação da sua "liberdade de expressão". Diagnostica, porque é essa a palavra sendo ele médico, como "doente" uma população inteira, que morre ainda em genocídios organizados no ano da graça de 2017, e temos todos de "dialogar" com ele. Aceitá-lo como ele é, porque, calhando, já nasceu assim, ou alguma experiência traumática assim o deixou. Anomalia é isto. Não há credo, nem oração que cure. E eu, ainda que novo, já não tenho idade (nunca ninguém a tem) para acomodar esta corte bárbara."
- Afirma, a dado passo, "não aceito promover um homossexual". Este homem foi, seguramente, júri de inúmeros concursos médicos ao longo da vida, este homem foi bastonário. É licito perguntar, depois de uma declaração destas, quantos colegas meus, homossexuais, não terá prejudicado em termos de carreira.
Sobre "Relações entre médicos" está escrito no artigo 107º do Código Deontológico "1 — Constitui dever dos médicos, nas suas relações recíprocas, proceder com a maior correção e urbanidade. 2 — Todos os médicos têm direito a ser tratados com respeito e consideração pelos seus colegas, sem discriminação ou perseguição, nomeadamente com base na ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, diferenciação, situação económica, condição social ou orientação sexual.".
- Fala especificamente de CR e da sua família, tece considerações sobre a mãe na sua qualidade de médico - escolheu ser entrevistado no IPO e não no recato da sua casa, é significativo -, onde está o dever de sigilo e contenção? A referência ao CR e à sua família configura uma interferência pública num caso específico. Um médico não tem esse direito. E se eu, de repente e enquanto clínica, desatasse a comentar a vida particular e familiar de Gentil Martins? E se eu decidir fazer um diagnóstico clínico público a Gentil Martins? Pois, seria não só uma grande cabra com cometeria um grave erro deontológico. Lá está.