da boa vontade
Devia estar a falar de presentes, de comunhão, de amor, de presépios e musgo e filhós e azevias e bolos-rei (a propósito, porque é que é quase impossível, senão realmente impossível, encontrar um bolo rei decente?), mas apetece-me é escrever sobre a entrada em vigor, no primeiro dia do ano, da nova lei do tabaco. E precisamente a propósito de uma das expressões mais repetidas nesta época: a boa vontade. Durante a discussão da lei, falou-se muito da alegada selvajaria fundamentalista da proibição de fumar na generalidade dos espaços públicos fechados (na verdade, a proibição não é total, já que cafés, restaurantes e bares podem escolher o regime e manter-se para fumadores caso tenham até 100 metros quadrados, desde que instalem um sistema de extracção de fumos eficiente, seja lá isso o que for, e, caso tenham uma superfície maior, reservar até 30% da área para fumadores, sendo necessário separá-la fisicamente). Argumentou-se que esse tipo de atitude é anti-democrática e iliberal, e que seria muito melhor fazer acções de sensibilização e levar as coisas “a bem”.
Sabe-se o quão eficaz é confiar na virtualidade do espírito cívico, mas podia ainda assim esperar-se que, decorrendo entre a aprovação da lei e a sua entrada em vigor um período de vários meses, as pessoas fossem demonstrando a sua capacidade de lidar responsavelmente com a questão, numa espécie de chapada de luva branca aos terríveis ditadores anti-fumo. Mas assiste-se ao espectáculo contrário. A generalidade dos estabelecimentos não levou a cabo qualquer modificação no seu espaço com vista ao cumprimento da lei. Diz o representante do sector da restauração e similares que tal se deve ao facto de a interdição de fumar ser a escolha maioritária. Mas fala-se com este ou aquele gerente e percebe-se que o que se passa é que nem pensaram no assunto – e estão a ver como páram as modas, tipo, se a lei é para valer ou, como tantas leis anteriores, sobre este e outros assuntos, é para ignorar. Quanto aos fumadores, idem: ninguém diria que vem aí uma lei anti-tabaco. É vê-los puxar do cigarro a toda a hora, como sempre fizeram, e a largar piadas sarcásticas (na melhor das hipóteses) se alguém lhes faz um reparo. Poder-se-á dizer que estão em “negação”. Na verdade, estão a ser iguais a si próprios: viciados que não conseguem controlar-se. Nunca fumei na vida, mas tendo muitos amigos fumadores, sei o quanto a frase que acabei de escrever os enerva. Acham que estou a ser, no mínimo, “paternalista” e, no máximo, “discriminatória” (atitudes, aliás, que costumam andar juntas). Na verdade, estou a basear-me no que se sabe, cientificamente, sobre o tabaco: é uma substância altamente aditiva -- ao nível da tão diabolizada e proibidíssima heroína -- e os seus consumidores são aquilo a que se dá o nome de toxicodependentes. Ora não se pode esperar deles um comportamento racional no que respeita à substância ou substâncias de que dependem para se sentirem bem. É a chamada contradição em termos. De modo que boa vontade, nesta matéria, só a dos outros, os não toxicodependentes, que têm convivido com a dependência dos fumadores com uma paciência e uma resignação que só podem ser explicadas por ausência de alternativas (e portanto pelo totalitarismo dos fumadores) ou por amor – o amor a quem fuma. Boa vontade, portanto, ou a vontade de conviver e de não ser desagradável, mesmo que tal implique dificuldade em respirar, olhos inflamados e um pivete indescritível no cabelo e na roupa (para não falar do resto, e o resto é bem pior). Era altura de os fumadores agradecerem tanta gentileza e pensarem em retribuí-la. Tipo presente de Natal – de muitos, muitos Natais atrasados. Vá lá, façam-nos uma surpresa. (publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 17 de dezembro)