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cozinha-se com o que há

O original sueco tem um nome impronunciável: Bröllopsbervär. A edição que tenho é francesa e traduz o título à letra: Ennuis de Noce (Aborrecimentos de Núpcias). A portuguesa, da Relógio de Água, dá pelo nome de As Sete Pragas do Casamento. É o último livro do autor, Stig Dagerman, publicado em 1949, quando tinha 28 anos. Li-o há muito. Não voltei a relê-lo. É estranha esta coisa dos livros preferidos. Serão ainda preferidos se os voltarmos a ler 10, 20 anos depois? E faz sentido, reler os mesmos livros para aferir neles da nossa passagem pelo tempo, quando há tantos que ainda não lemos? Hoje fui buscá-lo. Não estava com os outros Dagermans. Pensei tê-lo perdido, emprestado, esquecido com alguém que esqueci. Senti uma angústia estranha, desproporcionada. Afinal, pode-se sempre comprar outro livro. Não é como se fosse uma edição original. Porquê então o drama? Muitas explicações para isso – mas a mais simples e provavelmente mais verdadeira tem a ver com querer reler o livro que li, não um outro que, sendo o mesmo, não o era. Encontrei-o, afinal, fora dos dês, entre dois Conrad. Folheei-o para certificar o enredo, o ritmo – que, ao contrário do dos primeiros Dagerman, plenos de uma angústia adolescente, é suave e circular. E procurei a frase que do livro mais ressoa em mim, e o seu leit-motiv: “faz-se com o que se tem”.

O prefácio certifica que é, como o nome da maioria dos capítulos, um dito comum na Suécia, um provérbio. No caso, baseado no primeiro livro de cozinha sueco, do século XVIII. A ideia é, portanto, a que se só se pode cozinhar com o que se tem. Uma noção óbvia, a remeter para a resignação face ao que a vida oferece, uma espécie de estoicismo. A narrativa descreve 24 horas na vida de uma comunidade rural. O dia do casamento de Hildur com o talhante local, mais velho e que ela não ama. “Cozinha-se com o que se tem”, repete a noiva para si ao longo do dia, ao longo do livro. A ideia chave é então de que não vale sequer a pena tentar encontrar outros ingredientes que aqueles que estão à mão. Que se deve, ao invés de buscar a felicidade, fugir dela: o medo do fracasso é tão grande que o aviltamento e a procura da derrota são preferíveis. “O que é a salvação? É, julgo eu, o processo através do qual conseguirmos de repente suportar a ideia de que esta vida é vazia, fria, indiferente, um nada”, escreve Dagerman no final da obra. Mas a resignação, afinal, não existe. Repetir “cozinha-se com o que se tem”, não impede de desejar, de sonhar com o que nunca se experimentou. Alguém que oiça e compreenda tudo. Alguém cujo desespero irmão, cuja solidão em espelho, ofereça afinal o alívio possível – ou impossível. “Todos nos perguntamos: Em que pensam os outros homens quando estão sozinhos? Se pensam como nós, por que é então que nunca o sabemos? Talvez saibamos todos a mesma coisa sem nos atrevermos a revelá-la uns aos outros? Talvez nos perguntemos: Onde está o amigo que procuro em todo o lado? Talvez o encontremos, todos nós, quando amarfanhados e em sangue o descobrirmos deitado, amarfanhado e em sangue, também ele, no fundo desse abismo para onde nos impele o nosso desespero? (…) Talvez, simplesmente, esperemos descobrir nas trevas uma luz que a própria luz nos recusa, talvez esperemos descobrir na solidão um amigo que a comunidade dos outros nos nega.” Aparentemente, Dagerman desistiu desse encontro a 4 de Novembro de 1954, quando aos 31 anos acelerou a fundo numa garagem fechada. Mas, se for verdade o que escreveu, buscava-o ainda – sendo afinal o maior desespero o de não ser capaz de desistir, de viver com o que se tem. Mesmo suspeitando que não há mais nada. (publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 6 de dezembro)

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