do lixo, com glamour
Tenho uma mania. Melhor dito: tenho muitas manias, mas hoje apetece-me falar de uma delas. É a mania de aproveitar. Era assim que se chamava dantes – agora chama-se reciclar. Na verdade, acho que odeio a ideia de mandar coisas fora. Freud explicaria isto com uma teoria geral da retenção e do medo genérico de perder e talvez até, mais filosoficamente, com a recusa da morte. Mas isso agora não interessa nada: o que quero é falar da mania em termos práticos, não explorar os seus fundamentos. No outro dia, abri uma revista de um semanário qualquer e vi uma reportagem sobre gente como eu. Com fotografias e grande destaque. Como se fosse uma coisa extraordinária. Fiquei parva. Juro: fizeram umas seis ou sete páginas sobre pessoas que apanham móveis do lixo ou recuperam as heranças dos avós ou – como já fiz– tanto chateiam a dona de uma loja que ela oferece mesmo aquele puf redondo anos 70 que aliás não queria para nada e tinha para ali malbaratado e desprezado. Havia na reportagem um tipo que tinha ficado com os banquinhos de um cinema demolido (também eu ficaria, se os apanhasse, eram lindos) e outro que apanhara não sei o quê – acho que umas cadeiras – de um contentor de obras. Coisas que, na minha visão das coisas, são banais e mais, óbvias. Aliás, nunca passo por um contentor daqueles que põem à porta dos prédios em demolição/reabilitação sem espreitar lá para dentro e já fiquei a chorar, por várias vezes, um sofá anos 50 ou uma cadeira de escritório metálica anos 70 vistas, do táxi, à porta de um qualquer prédio.
Tenho para mim que a única razão pela qual as lojas “de decoração” se safam tão bem é uma espécie de saloiice apressada das gentes que suspiram por coisas “novas” (mesmo que a “imitar antigo”). Porém, às excepção das camas e sofás – por algum motivo exdrúxulo (talvez o facto de as pessoas antigas serem mais pequerruchas?) as camas com umas décadas são miseravelmente acanhadas e os sofás, na maioria, hiper desconfortáveis – quase tudo o que é necessário para uma casa decente está disponível em versão salvados, acidental ou organizada (como nos armazém de pseudo-monos tipo Emaús). Mesas, por exemplo. Há-as redondas, quadradas, rectangulares, ovais e por aí fora. Quase todas as fórmulas já foram tentadas, nesta matéria. Logo, devem andar por aí. Para quê procurar no IKEA ou na AREA ou qualquer outro entreposto desses, se pelo mesmo preço ou até muito menos se arranja um real mcCoy dos anos 30, 40, 50, 60 ou 70, de madeira a sério e tudo, com a vantagem de parecer único (aliás, alguns até são – cópias de móveis “da moda” de há décadas feitas por um carpinteiro português por encomenda de uma família burguesa sem posses para adquirir o original) e de nos fazer sentir que contribuímos para combater o desperdício? Quem é que quer uma casa de telenovela, toda comprada no mesmo sítio e ao mesmo tempo, sem fífias nem alma? Quem é que quer viver num cenário morangos com açúcar, céus? As casas são a melhor radiografia da alma que conheço – mais fiéis ainda que os sapatos e um bocadinho menos evidentes que os livros que se têm na estante e os discos que se ouvem (ou que nunca se ouvem). Pode-se fazer análise psicológica -- e social e económica, claro, mas essa é por demais óbvia -- instantânea ao entrar numa sala. Como disse, creio, Sophia de Mello Breyner, “a minha casa é a minha alma”. E ai de quem a comprou, à alma, num pronto-a-exibir sem mossas nem história, sem espessura nem a ilusão, pelo menos a ilusão, de ser inimitável e irrepetível. (publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 20 de janeiro)

