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jugular

é feio porquê

Nunca li um daqueles livros de boas maneiras dondocos. Se calhar devia. Dizem que são muito divertidos e se descobrem umas coisas. A única coisa do género que folheei foi em pré-adolescente e devia ser para aí dos anos 40 do século passado. Era tudo sobre banquetes e como apresentar embaixadores, que cor e comprimento de luvas e que tipo de chapéu escolher para cada ocasião e tal. Também havia uns livros “para meninas”: como sentar e andar e sorrir, do que falar, o que fazer quando um rapaz “mostra interesse”, o que desejar na vida e como lá chegar. Deliciosos.

 

Tal décalage temporal, porém, impede-me de poder certificar se algumas normas que me acompanham desde miúda no que respeita ao que “é bonito” e ao que “é feio” ainda constam dos tais códigos de bem conviver em toda a sala. Coisas, por exemplo, como “uma mulher honesta não tem ouvidos”. Uma mulher, desde logo: de um homem espera-se reacção, resposta, lavagem da honra (com sangue ou, pronto, umas pêras). Honesta: leia-se “séria”, “educada”, que “conhece o seu lugar” – humilde, reservada, aprimorada, adequada. Uma mulher que queira adequar-se espera que alguém fale por ela, a proteja, lhe guarde a dignidade – não se defende e muito menos ataca. Cala-se. Faz de conta que não ouviu. Se não quiser ser isso que se só se diz das mulheres: vulgar.

 

Vulgar é uma palavra interessante. Quer dizer normal, comum, mas também sem interesse nem apelo – ordinário. Ou seja, baixo, rasca, desprezível. Uma mulher que mostre ter ouvido algo de que não gostou e a quem passe pela cabeça responder; uma mulher que tente fazer valer a sua dignidade e ideias; uma mulher que, impensável, se lembre de discutir e levantar a voz é portanto uma mulher sem qualidade: medíocre, reles, em distinção – menos mulher, então.

 

Se não sei se ainda se dizem estas coisas às meninas assim desta forma, não tenho dúvidas de que ainda se dizem às mulheres – todos os dias, em todo o lado, e muitas vezes dito por mulheres. Qualquer uma, por exemplo, que se apresente publicamente a defender as suas ideias será sempre “histérica” e “arrogante”, ou, claro, “peixeira”, isto descontando tudo o que se dirá sobre o penteado, a largura das ancas, as rugas ou falta delas, a escassez ou excesso da sua vida sentimental, etc. Que as mulheres sejam as principais fautoras deste controle do género, esforçando-se, em manada, por manter o “decoro” das que tresmalham, não é pequeno milagre. É como se estivessem, o tempo todo, a assegurar-se de que não vão ter de se portar “como homens”, ou seja, a reagir e a defender-se e a atacar sempre que tal seja necessário, mas que podem continuar a pedir e esperar protecção (o que é o mesmo, talvez não se tenham dado conta, de pedir e esperar agressão). E que quem fura o esquema levará a etiqueta que merece, a do ridículo e do opróbrio.

 

Como as regras sobre colocação de pernas – sempre cruzadas, nunca “abertas” -- que só fariam sentido (esteticamente) no tempo em que as mulheres não usavam calças e funcionam como mais uma conformação à ideia de reserva e decoro e não ocupação de espaço, a maioria das normas chamadas “de boa educação” que se recomendam/impõem às mulheres são uma demonstração eloquente do quanto há a fazer em termos de desconstrução dos adquiridos e dos estereótipos. Podemos começar até por coisas aparentemente anódinas e simpáticas, como a regra de que os homens deixam sempre passar as senhoras ou lhes devem dar o lugar. Que fragilidade especial ou deferência específica distingue as mulheres dos homens, que os deverá levar a tratá-las com tal paternalismo? Todo um programa, então, a “boa educação” – e tanto a apontar-lhe. Com o dedo, sim, e bem espetado (e alguém, de caminho, que explique também esse aparvalhado interdito).

 

(publicado na coluna 'sermões impossíveis' da notícias magazine de 22 de agosto)

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