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Quarta à noite, a RTP2 passou um documentário sobre Humberto Delgado. Quase inteiramente protagonizado e narrado pela filha mais nova, Iva Delgado, o documentário traça um retrato do homem que em 1958 se candidatou contra Tomás à presidência e cuja resposta a uma pergunta sobre o que, se eleito, faria a Salazar ainda hoje espanta pelo desassombro: "Obviamente, demito-o."

 

Com aquele documentário, relembrei coisas que esquecera e vi outras talvez pela primeira vez. Vi as fotos das espantosas manifestações a favor de Delgado no Porto, que a ditadura censurou em todos os jornais; ouvi os extraordinários discursos do general - "Chega, eles sabem que o povo não os quer" - e apercebi-me de algo que ou nunca soube ou esqueci: havia muita gente com coragem e vontade de derrubar Salazar, muito mais gente que os membros do PCP, muito mais gente que os militares que em 1974 avançaram sobre Lisboa para acabar com o estado a que isto chegara. Não há nada de "apagada e vil tristeza" nas avenidas do Porto cheias para aclamar Delgado, nem nos que se precipitaram para o receber em Santa Apolónia. Ao fim de 30 anos de salazarismo, se tanta gente foi capaz de sair à rua e desafiar um regime que perseguia, censurava, exilava, prendia e torturava - e, como abjectamente se provou no caso de Delgado, também assassinava - foi porque estava farta, porque sabia que não queria aquilo, porque exigia outra coisa.

 

Aquelas imagens dizem da revolta e da coragem, afinal muito mais numerosas e generalizadas que o que a mitificação do salazarismo como "expressão da alma portuguesa" admite e propaga. Dizem que o regime esteve por um fio e o percebeu: impedir a fiscalização do escrutínio pela oposição foi, senão admitir a derrota, mostrar que temia perder. Aquelas imagens e o que se lhes seguiu deveriam impossibilitar que alguém tivesse o despudor de usar para Salazar o epíteto de democrata, seja em que formulação, combinação ou contexto for.

 

Mas faz sentido: o país que deixou morrer na cama em 2006, sem um dia de prisão cumprido, o chefe da brigada que matou Delgado é o mesmo em que, a torto e a direito, se apoda gente de fascista e ditador enquanto se suspira pelo "tempo dos homens sérios" apontando Salazar como modelo. O país do "é tudo igual". Mas não, não é. Facto: Salazar nada teve de democrata e é duvidoso que tivesse algo a ver com Cristo. Facto: por mais que insulte todos os que sabem distinguir democracia e ditadura e por mais que injurie os democratas-cristãos verdadeiros, dos quais muitos lutaram contra Salazar (e quantos estariam nas ruas de Porto e Lisboa a gritar por Delgado), pode-se dizer, hoje, em Portugal, "Salazar foi um democrata-cristão convicto". Pode. Não é proibido nem dá prisão. É só aviltante. É só estulto. É só falso.

 

(publicado hoje no dn)

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