Os genitais de Mário Ramires
O Conselho de Ministros aprovou uma proposta de lei que pretende simplificar o reconhecimento legal da identidade de género das pessoas transexuais - para que, finalmente, todas as pessoas passem a ter direito à sua identidade de género. Também o BE tinha já apresentado à Assembleia da República um projecto de lei com esse objectivo.
Trata-se, em ambos os casos, de simplificar a vida das pessoas transexuais, evitando um processo em tribunal que é sempre longo e invasivo, com resultados incertos (devido à lacuna na lei) e frequentemente com requisitos atentatórios dos Direitos Humanos. Mais: durante todo o processo de transição clínica e durante o subsequente processo em tribunal, a documentação de uma pessoa transexual não corresponde à sua fisionomia e à sua identidade. A consequência evidente é a exclusão social, laboral e escolar - para não falar do pesadelo que pode ser a operação mais simples da vida quotidiana (como usar um cartão de débito para um pagamento) ou mesmo a tentativa de exercício da cidadania (como o acto de votar numa eleição).
A actual lacuna na lei significa que o Estado recusa durante muitos anos o direito à identidade a cada pessoa transexual.
É evidente que as recomendações no sentido da criação de uma lei da identidade de género têm vindo a ser cada vez mais frequentes por parte de instâncias internacionais e, sobretudo, europeias. O Comissário Europeu dos Direitos Humanos, Thomas Hammarberg, alertou recentemente o Governo português para a clara violação de Direitos Humanos a que as pessoas transexuais são sujeitas. Mas Thomas Hammarberg explica que para além de urgente, é fundamental que a legislação não inclua requisitos atentatórios dos Direitos Humanos, como a obrigatoriedade de cirurgias ou mesmo de esterilidade. É que requisitos como estes não respeitam a integridade física das pessoas transexuais e a sua autonomia para decidirem os procedimentos a que querem sujeitar-se (uma vez informadas por profissionais de saúde sobre os respectivos riscos). Respeitando esta recomendação, a proposta do Governo e o projecto do BE exigem um diagnóstico de perturbação da identidade de género mas não incluem esses requisitos.
Já Mário Ramires (MR), um dos subdirectores do Sol, escreve esta semana um artigo de opinião em que, escandalizado, discorre sobre os enormes perigos de não se exigir uma cirurgia genital para reconhecer a identidade de género. "O que é um homem? O que é uma mulher?", pergunta.
No fundo, se o Irão exige cirurgias genitais, porque não havemos de exigi-las também? E MR provavelmente também achará importante garantir que as pessoas transexuais sejam irreversivelmente estéreis - mesmo porque a esterilização é sempre uma preocupação presente em quem pretende manter a ordem.
Pois é, azar dos azares, a resposta à questão que atormenta MR não é fácil: caracteres sexuais primários e secundários, níveis hormonais e até cromossomas, para não falar da expressão de género, variam de pessoa para pessoa. Só que, passando do objectivo para o subjectivo, já tudo se torna evidente e fácil de explicar, inclusivamente a crianças: cada um e cada uma de nós sabe muito bem se é um homem ou uma mulher e não admite que outra pessoa (ou o Estado) ponha isso em causa.
MR recusa a primazia da identidade de género e defende que são os genitais que devem determinar o sexo legal - e social. Ora bem, eu não conheço MR e os seus genitais são-me, francamente, irrelevantes. No entanto, utilizo palavras no género masculino para o descrever. E aposto que mesmo a esmagadora maioria das pessoas que conhece MR o reconhece enquanto homem sem alguma vez ter verificado os seus genitais. Mais: sou mesmo capaz de apostar que o Estado não tem examinado os genitais de MR com regularidade para garantir que ainda pode ser considerado um homem.
Se MR pensar no assunto alguns segundos, concluirá que o reconhecimento social do género de uma pessoa depende muito pouco dos seus genitais. As pessoas transexuais, que não têm como não pensar no assunto, sabem isso bem: terapias hormonais ou outras cirurgias (como a mastectomia ou até uma rinoplastia) podem aliás ser mais importantes do que cirurgias genitais. E se a maioria das pessoas transexuais opta por realizar também estas cirurgias, há quem não possa e quem não queira fazê-lo, com base na informação sobre os riscos inerentes. Não cabe à lei exigi-lo - cabe à lei reconhecer a identidade de género da pessoa, para além do seu direito à integridade física.
E se a obsessão genital de MR é um bom indício do seu nível de reflexão sobre o assunto, ela continua na melhor parte do seu artigo: a fantasia sobre o "casal de homossexuais" que passa a poder adoptar porque uma das pessoas muda de sexo legal, mesmo que naquela casa continue a haver "dois pénis" ou "duas vaginas". Explicando devagarinho aquilo que é básico mas que MR não procurou saber antes de publicar o seu texto: um diagnóstico de perturbação da identidade de género atesta que se está perante uma pessoa transexual, ou seja, uma pessoa cuja identidade de género não corresponde ao sexo atribuído à nascença. Ninguém se submete a um processo de transição por capricho ou para contornar restrições na adopção, por mais arbitrárias que elas sejam.
Aliás, continuando a explorar este exemplo de MR, vale a pena mais uma explicação: se o sexo legal de ambas as pessoas era, por exemplo, o feminino mas a identidade de género de uma dessas pessoas é masculina, então não estaríamos perante um "casal de homossexuais"; estaríamos perante um casal de heterossexuais, em que uma das pessoas seria um homem transexual e a outra uma mulher não-transexual.
E se MR pensasse bem, a verdadeira ameaça (de acordo com as suas obsessões) seria a seguinte: imaginem que temos um casal de pessoas de sexo legal diferente, em que a pessoa que o Estado ainda reconhece como homem é na realidade uma mulher transexual. Podem adoptar enquanto o sexo legal for diferente, certo? Mas já pode haver "duas vaginas" na mesma casa... Afinal, é um perigo o Estado não reconhecer rapidamente a identidade de género desta mulher transexual e o melhor é mesmo garantir rapidamente que a lei é aprovada, não é?
Drama final deste artigo tão preocupado com a informação: "como se explica isto às crianças?". Finalmente, uma pergunta com resposta simples: é mais ou menos o mesmo princípio que se deve aplicar para explicar a pessoas adultas - saber do que se fala.