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Uma república decente

Há uns meses atrás convidaram-me para escrever um artigo para a revista de bordo da TAP. Era suposto ser sobre o que me atrai em Portugal – obviamente para consumo dos não-portugueses. Não encontro o artigo online mas o argumento era o seguinte: Portugal não tem nada de espectacular do ponto de vista monumental ou de referências culturais; mas também não é uma faixa de gaza (assim, sem maiúsculas); não é um destino d’ A Europa (assim, com maiúsculas), mas também não é um lugar tropical de voos charter diretos para a praia; não tem daquelas gastronomias criadas em grandes côrtes do passado, mas também não se come sempre a mesma coisa básica; a água do mar é fria demais, mas as praias não são cinzentas nem cortam os pés com os corais; and so on. O “ponto”? Portugal é um local intermédio, sem a grandeza (e a vaidoseira) dos grandes centros, e sem as doenças e os perigos de muito sítio periférico. Local de transição e mistura, uma pessoa sente-se aqui um terço na Europa, um terço no Norte de África e outro terço na América do Sul. No bom de cada uma, sem o mau de cada qual. Era um texto meio tolo, a puxar para o divertidóide, para ler up, up and away.

 

Mas outro dia dei por mim a pensar nele. Porque não é assim que a maioria dos meus conterrâneos pensa sobre o burgo. O pessoal é um pouco de extremos nesta matéria: ou se incha com as glórias do passado (descobrimentos e essas coisas assim), ou denigre isto como os cus de judas (e o cheirinho anti-semita não poderia estar ausente). Pensar Portugal como intermédio não ocorre a ninguém, é chocho demais, águas de bacalhau, banho-maria. Ou grandeza ou miséria, prontoS. Dei por mim a pensar nestas coisas em pleno Parlamento e, portanto, em termos mais ou menos políticos (coisa que às vezes acontece ali). Temos uma cultura política que pensa o país exactamente naqueles mesmos termos extremados. Uns pensam num grande passado e não se conformam com a ideia de que tal não se repetirá; outros pensam que com isto não há nada a fazer. O salazarengo, o taxista ou o empreiteiro dominam o nosso pensamento político enquanto colectividade. Quando se projecta o futuro  pensa-se com excessiva grandiosidade e novo-riquismo, em grandes obras e grandes sucessos; ou pensa-se que não há nada a fazer e mais vale cada um tratar da sua vidinha.

 

Acontece que nunca Portugal será o que foi (o que supostamente foi, mas isso é outra H/estória), e nunca Portugal será uma potência – mas isso não quer dizer que seja necessariamente um fracasso. Portugal deveria ser, simplesmente, uma república decente. Tem tudo para isso: ganhou, como dizia um amigo meu, a independência do Brasil (esse sim, será uma potência), livrou-se das colónias (mas ninguém parece meter isso definitivamente na cabeça...), “entrou na Europa” (deliciosa expressão). Tudo isto é bom. É um país pequeno, com apenas 10 milhões de almas (OK, algumas pessoas não terão tal coisa, mas vá). É dos mais pobres entre os mais ricos, dos mais ricos entre os mais pobres. Tem tudo para ser um sítio decente, onde a prioridade seja garantir que esta mão-cheia de gente espalmada à beira-mar seja escolarizada, tenha emprego, tenha segurança social, tenha saúde, seja criativa, seja solidária com o resto do mundo e goze a vida. Caramba, não somos uma Índia com triliões de problemas para resolver. Não se percebe, sinceramente, como construímos tanta desigualdade e como desperdiçámos tantos recursos. Não faço o elogio do “orgulhosamente sós”, da velha direita, nem vivo o sonho da autarcia utópica, da velha esquerda. Mas também não compro os delírios de grandeza – quer os da prisão atávica a uma imagem do passado, sempre cheia de ranço colonial (a panca com a língua e a Lusofonia, por exemplo, é irreal; somos 10 milhões a falar um dialecto exótico e pronto - what’s the big deal?), quer os da emulação (impossível) das potências que passaram a sério pela revolução industrial. Acho mesmo que, no nosso caso, small é beautiful e que há que aproveitar essa circunstância. Há sítios assim, com todas as diferenças entre eles e em diferentes graus relativamente ao seu contexto, dos uruguais às noruegas. Eu só queria um lugar decente. Sem manias, sem complexos, sem uma desigualdade obscena, sem preconceitos nojentos.

 

Ali pelos anos oitenta chegámos a uma situação em que tínhamos todos os trunfos para dar certo, para dar decente: país pequeno, sem colónias, na Europa, com recursos q. b., com democracia – e ainda por cima (OK, vá) com umas praias, uma comida e um clima porreirinhos. Deus deu-nos nozes. Ou estávamos desdentados ou partimos os dentes com a fuçanguice.

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